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Sobre delírios de um prisioneiro de guerra e sobre viver intensamente
Posted by Cottidianos
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Segunda-feira,
23 de março
"Sempre há algo acontecendo,
não
existem momentos comuns, nada é banal."
(do filme, Poder Além da Vida)
Socrates
— Retire o lixo.
Dan Milman — Retire você. Diz
o jovem, pensando que se tratava do lixo doméstico.
Socrates — O lixo está
aqui, diz Socrates apontando para a mente de Dan. É primeira parte de seu
treinamento. Aprenda a jogar fora tudo o
que não precisa aqui dentro.
Dan Milman — Como?
Socrates — Encontre-me
amanhã. No Campus. Na ponte, Riacho dos
Morangos.
No
dia seguinte, Dan corre para encontrar Socrates na ponte indicada. Pede que eles
seja breve.
Socrates
— Claro! Responde ele, jogando Dan de cima da ponte para dentro do rio. O jovem
sai de dentro d’água muito bravo. Pede explicações. Sócrates diz, simplesmente:
Socrates — Eu esvaziei
sua mente.
Dan Milman — Você o quê?
Pergunta o jovem ainda muito bravo.
Socrates — Eu a
esvaziei.
Dan Milman — Não esvaziou
não. Você me jogou no rio.
Socrates — Enquanto caía,
em que pensava Dan?
Dan Milman — Não sei.
Socrates — Estava
pensando na escola?
Dan Milman — Não!
Socrates — Em fazer
compras?
Dan Milman — Não!
Socrates — Em onde
estava indo?
Dan Milman — Não!
Socrates — Estava 100%
dedicado a experiência que estava tendo. Tem até uma palavra para isso, diz
Sócrates imitando o grito dado por Dan, ao ser jogado dentro do rio.
Os
dois continuam o dialogam no belo e verde ambiente do Campus que os rodeia.
Mais a frente na conversa, Sócrates diz.
Sócrates — Não estava
prestando atenção. Mesmo agora não está atento. Sua mente está enchendo de
novo. Está perdendo tudo o que está acontecendo.
Dan Milman — Não há nada
acontecendo.
Sócrates,
repentinamente, agarra os ombros de Dan com uma mão e o obriga a olhar para as
cenas que estão acontecendo, naquele exato momento, no parque ao redor; amigos
conversando e rindo; Um cachorro brincando; Um jovem, sentado em baixo de uma
árvore, lendo um livro; Uma Joaninha subindo tranquilamente pela folha de uma
planta; Um casal namorando.
Sócrates
larga a pressão que fazia nos ombros do jovem e diz:
Sócrates — Sempre há
algo acontecendo. Retire o lixo, Dan. Seu lixo é a única coisa que lhe afasta
da coisa que realmente importa: esse momento. Aqui. Agora. E quando você
estiver no aqui e agora, ficará maravilhado com o que pode fazer e como pode
fazer bem.
***
O
texto acima é uma narrativa da cena de um dos meus filmes preferidos, chamado, Poder Além da Vida (Peaceful Warrior). Um
filme americano, lançado em 2006, tendo nos papéis principais, Nick Nolte (Sócrates),
Scott Mechlowicz (Dan Milman) e Amy Smart (Joy). Apesar de o título do filme,
em português, remeter a questões espirituais, o filme é, na verdade, uma
história de superação de um jovem ginasta de uma universidade americana que, em
um acidente automobilístico, fica impossibilitado de fazer aquilo que ele mais
gosta: esporte. O filme contém diálogos muito ricos e bem elaborados que nos
fazem refletir sobre o modo como fazemos o nosso caminho pela vida.
A
cena do filme com a qual decidi abrir o texto, nos traz à reflexão o fato de
usarmos melhor a nossa mente, prestando atenção a tudo o que nos cerca, de
ficar atentos a tudo o que acontece ao nosso redor. Muitas pessoas passam pela vida como se estivessem
numa espécie de topor. Por estarem desatentas aos pequenos detalhes da vida,
elas acabam não retirando da vida o essencial.
Todos
nós, em nosso dia a dia, estamos sujeitos a acumular em nossa mente, muito lixo
mental. Precisamos achar um método de nos livrar desse lixo. Não precisamos ir
muito longe. Basta pensar na lixeira de nossas casas. Tiramos o lixo todos os
dias, ou a cada dois dias, depende do tamanho do lixo e do costume de cada um. Imagine
se você nunca se preocupasse em tirar o lixo. Como ficaria o seu ambiente doméstico?
Insuportável, para dizer o mínimo. Assim é com o lixo mental que acumulamos,
temos que nos livrar dele. Se não o fizermos nosso reservatório mental vai
ficando tão cheio que acabamos por não sermos tão produtivos e não aproveitarmos
tão bem a vida como, naturalmente, nos é dado fazer.
Por
que esperar passarmos para a outra dimensão da vida, a dimensão espiritual para
vivermos a vida com intensidade? Ou sofremos algum acidente grave e, num leito
de hospital, refazermos nossos planos de sermos mais intensos em nosso agir e
em nossas relações cotidianas? Você deve conhecer alguém que depois de um sério
problema de saúde, percebeu que estava fazendo tudo de forma errada, e resolveu
traçar uma nova rota para singrar com mais eficiência e segurança os mares da vida.
Eu também conheço. Não seria muito mais proveitoso rever o modo como estamos
vivendo e refazer a rota ainda com saúde e disposição?
Como
cheguei a estas reflexões? Lendo mais uma história do site americano VOA News,
chamada, An Occurrence at Owl Creek Bridge (Uma ocorrência na Ponte Riacho da
Coruja). O texto foi escrito pelo autor americano, Ambrose Bierce, publicada
originalmente em 1890. No VOA Voice of America o fato é narrado por Shep O’Neal.
Fiz uma tradução livre do texto e o apresento a vocês.
Tenho
apresentado aqui no blog, alguns textos por mim traduzidos do referido site. Por
quê? Em primeiro porque é uma forma de aprendizado, segundo porque me distraio
com essa atividade, e terceiro, informo aos caros leitores.
O
texto é ambientado entre os anos de entre os anos de 1861-1865, nos Estados Unidos, durante a Guerra Civil
entre os estados do norte e do sul. Os soldados do exercito do norte executam
um prisioneiro, enforcado, em uma ponte. Antes de morrer o soldado divaga em
pensamentos de fuga e liberdade. Um trecho que liga essa história com a cena do
filme é quando, na fuga, a única coisa que o prisioneiro no fundo do rio quer,
é respirar. Quando ele põe a cabeça para fora da água, é como se seus sentidos
estivessem mais aguçados que antes. Ele vê e ouve sons que nunca antes tinha
ouvido. Só então, já em direção ao mundo espiritual, é que o homem enxerga a
vida em sua total intensidade.
Vamos
à história.
***
Uma
ocorrência na Ponte Riacho da Coruja
A
ocorrência, ou evento, de nossa história de hoje tem como cenário a Guerra
Civil dos anos sessenta, entre os Estados Americanos do norte e do sul. Um grupo de soldados está enforcando um
fazendeiro sulino, na tentativa de parar os movimentos militares do norte,
através da Ponte Riacho da Coruja.
No
último momento de sua vida, o prisioneiro sulino sonha que escapou. Tudo que
acontece na história é reflexo das imagens que se formam na mente do
prisioneiro, antes de ele morrer.
***
Um
homem, em pé sobre uma ponte ferroviária, no Alabama, olhava para dentro das
águas velozes que corriam no rio Riacho da Coruja. As mãos do homem estavam
amarradas para trás. Havia uma corda ao redor do seu pescoço. A corda estava em
uma parte da ponte, acima dele. Três soldados do exército do norte estavam
parados próximos ao prisioneiro, esperando ordens do capitão para enforcá-lo.
Todos
estavam prontos. O prisioneiro estava em parado, calmamente. Os olhos dele não
estavam vendados. Olhava para baixo, para as águas sob a ponte. Ele fechou os
olhos.
Ele
queria que seus últimos pensamentos fossem para sua esposa e seus filhos.
Porém, enquanto tentava pensar neles, ouviu sons, repetidamente. Os sons eram
suaves. Mas tornavam-se cada vez mais altos e começavam a ferir seus ouvidos. A
dor era forte. Ele queria gritar. Entretanto, os sons que ele ouvia eram somente
as águas velozes do rio, correndo embaixo da ponte.
O
prisioneiro, rapidamente, abriu os olhos e olhou para a água. “Se eu pudesse
soltar minhas mãos”, pensava ele. “Então eu poderia tirar a corda de meu
pescoço e pular no rio. Eu poderia nadar por baixo d’água e escapar do fogo de
suas armas. Poderia alcançar o outro lado do rio e chegar em casa, através da
floresta. Minha casa é fora da área militar, e minha esposa e meus filhos estão
salvos lá. Eu também estarei...
Enquanto
estes pensamentos passavam pela mente do prisioneiro, o capitão deu ordens aos
soldados para enforcá-lo. Um soldado obedeceu rapidamente. Ele amarrou
firmemente a corda, ao redor do pescoço do prisioneiro. Em seguida, o
prisioneiro caiu por um vão da ponte.
Quando
o prisioneiro caiu, tudo pareceu tornar-se escuro e vazio. Então ele sentiu uma
dor aguda no pescoço e não conseguia respirar. Havia dores terríveis dores
saindo de seu pescoço, percorrendo seu corpo, seus braços e pernas. Ele não
conseguia pensar. Podia apenas experimentar um sentimento de vida em um mundo
de dor.
Então,
de repente, ele ouviu um barulho... Alguma coisa caindo na água. Houve um
grande som em seus ouvidos. Tudo ao redor dele estava frio e escuro. Agora ele
conseguia pensar. Acreditava que a corda havia rompido, e que ele estava dentro
do rio.
Mas
a corda ainda em volta do seu pescoço e suas mãos estavam amarradas. Ele pensou: “Quão divertido. Quão divertido é
morrer enforcado no fundo de um rio”. Então ele sentiu seu corpo movendo-se
para a superfície da água.
O
prisioneiro não sabia o que estava fazendo. Mas suas mãos alcançaram a corda no
pescoço e o livraram do incomodo.
Imediatamente
ele sentiu a mais violenta dor que jamais havia sentido. Queria colocar a corda
de volta ao pescoço. Ele tentou, mas não conseguiu. Suas mãos agitaram a água e
o impulsionaram para a superfície. Sua cabeça emergiu da água. A luz do sol
cortou seus olhos. Sua boca se abriu, e ele inspirou o ar. Foi demais para os
seus pulmões. Ele soltou o ar com um grito.
Agora
o prisioneiro podia pensar mais claramente. Todos os sentidos voltaram. Eles
estavam mais aguçados que antes. Ele ouviu sons que nuca tinha escutado antes —
que nenhum ouvido humano jamais tinha escutado: O bater das asas de um pequeno
inseto, o movimento de um peixe. Seus olhos viam mais que apenas as árvores na
beira do rio. Ele via cada folha nos galhos das árvores. Ele via as finas linhas
das folhas.
E
ele viu a ponte, com a parede no fim. Viu os soldados e o capitão na ponte.
Eles gritaram, e apontaram para ele. Eles pareciam monstros gigantes. Enquanto
olhava, ele ouviu tiros. Algo atingiu a água, perto de sua cabeça. Agora, ele
ouviu um segundo tiro. Viu um soldado atirando contra ele.
Ele
sabia que tinha de chegar à floresta e fugir. Ouviu o comandante mandar os
outros soldados atirar.
O
prisioneiro mergulhou no rio, tão profundo quanto ele pode. A água faz um
grande barulho em seus ouvidos, ainda assim, ele ouviu os tiros.
Quando
voltou novamente a superfície, viu as balas atingirem a água. Algumas delas
rasparam suas mãos e sua face.
Uma
delas raspou o colarinho de sua camisa. Ele sentiu o calor da bala nas costas.
Quando
pôs a cabeça fora d’água para respirar, viu que estava bem mais longe dos
soldados. Então ele começou a nadar com mais força.
Ele
viu os soldados apontarem os canhões em sua direção. Mas não o acertaram.
Então, de repente, ele não conseguia nadar. Foi pego por um redemoinho que se
manteve girando e girando em volta dele. Era o fim, pensou. Então, tão de
repente quanto o apanhou, o redemoinho o soltou e o atirou para fora do rio.
Ele estava em terra firme.
Ele
beijou o chão. Olhou ao redor. Havia uma luz rosa no ar. O vento soprando nas
árvores parecia música. Ele queria estar ali. Mas os canhões atiravam
novamente, e ele ouviu as balas passando acima de sua cabeça. Levantou-se e
correu para a floresta. Finalmente, ele encontrou a estrada que o levava para
casa. Era uma estrada larga e reta. Também parecia que ninguém nunca passado
por ela. Nenhuma fazenda. Nenhuma casa ao lado da estrada, apenas árvores
pretas e altas.
Nas
árvores pretas e altas, o prisioneiro ouvia vozes estranhas. Algumas delas
diziam palavras que ele não conseguia entender.
Seu
pescoço começou a doer. Quando ele o tocou, o sentiu grande demais. Seus olhos
doíam tanto que ele não conseguia fechá-los. Seus pés se moviam, mas ele não
conseguia sentir a estrada.
Enquanto
ele caminhava, sentia uma espécie de sono. Agora, meio-acordado, meio dormindo,
ele encontrou-se a si mesmo na porta de casa. Sua adorável esposa correu para
ele. Ah, finalmente.
Ele
colocou os braços em volta da bela esposa. Então ele sentiu uma terrível dor
atrás do pescoço. Tudo em volta dele tornou-se uma grande luz branca e sons de
canhão. E então... Então... Escuro e silêncio.
O
prisioneiro estava morto. Seu pescoço estava quebrado. Seu corpo pendurado no
fim de uma corda balançava-se de um lado para outro. Balançando, suavemente, em
um vão da Ponte Riacho da Coruja.
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