0
Taiguara: Um grande talento da música brasileira esquecido nas páginas do tempo – Parte II
Posted by Cottidianos
on
00:34
Domingo,
25 de janeiro
“O único modo
de lidar com um mundo de pouca liberdade,
é se tornar tão
absolutamente livre,
que sua mera
existência é um ato de rebeldia”.
(Albert Camus)
“Vai recupera
a paz perdida e as ilusões,
não espera vir a
vida às tuas mãos
Faz em fera a
flor ferida e vai lutar”
(Viagem –
Taiguara)
Os Festivais de
Música
Um
dos eventos de suma importância para a revelação de grandes nomes da música
popular brasileira foi, sem dúvida, os Festivais de Música. Esses festivais
foram transmitidos por grandes emissoras de TV entre 1965 e 1985, tendo seu
ponto alto no final da década de 60 e início dos anos 70. Com a tomada de poder
pelos militares em 1964, a sociedade brasileira passou a sofrer forte
repressão, principalmente, na música, teatro, cinema, literatura e outras
vertentes que envolvessem arte e cultura. Em meio a toda essa repressão e
perseguição, os artistas encontraram, armas para fazer oposição ao duro regime
que restringia liberdades. Uma dessas armas eram as músicas, que ficaram
conhecidas como músicas de protesto. Como esses concursos alcançavam grande
sucesso, os militares resolveram intensificar a vigilância sobre eles e sobre
os artistas que deles participavam. Eles temiam que as canções pudessem, de
alguma forma, atingir a moral e os bons costumes, ou as bases do próprio
regime.
Atento
ao que acontecia ao seu redor e com sede de mostrar sua arte, Taiguara também
fez sua incursão por esses festivais. Sua primeira participação neles aconteceu
no I Festival Internacional da Canção (I FIC), em 1966, realizado no ginásio do
Maracanazinho, no Rio de Janeiro. Nesse festival as músicas vencedoras do 1º,
2º e 3º lugares foram, pela ordem; Saveiros
(Dori Caymmi e Nelson Motta), com Nana Caymmi; O cavaleiro (Tuca e Geraldo Vandré), com Tuca e Dia das rosas (Luiz Bonfá e Maria Helena
Toledo), com Maysa. Taigura chegou a grande final com a música Não se morre de amor, de Reginaldo
Bessa, sua música porém, não chegou a figurar entre os três primeiros lugares,
entretanto sua participação nesse festival o projetou ainda mais na mídia.
Não
bastasse todo o sofrimento que os brasileiros enfrentavam com a repressão feita
pelo governo dos militares, em 1968, outro duro golpe viria a atingir em cheio
a liberdade de expressão. Naquele ano, era decretado pelo General Costa e
Silva, o Ato Institucional no 5, o AI-5, como ficou conhecido.
Dentre outras arbitrariedades o AI-5 permitia cassar mandatos de parlamentares,
cassar direitos políticos de cidadãos por dez anos, fechou o Congresso Nacional
por tempo indeterminado. Mesmo assim, os festivais de música continuavam
acontecendo. Apesar da forte censura e vigilância que impunham os militares
também lucravam com eles, ao passar para o exterior uma imagem de que estava
tudo em paz no Brasil.
Na
quinta edição do FIC, em 1970, o cantor Toni Tornado e Erlon Chaves, maestro e
arranjador, já haviam sido atuados pela Polícia Federal e também receberam
advertências por parte dos censores. Os dois músicos, ambos negros, durante a
apresentação da música, Eu também quero
mocotó, de Jorge Ben, trouxeram para a apresentação musical, mulheres
brancas e loiras. Vestindo roupas colantes da cor da pela, as mulheres pareciam
seminuas e insinuavam beijar os cantores. A sensualidade do número irritou os
censores.
Na
sexta edição do FIC, em 1971, foram inscritas 1.500 músicas. Em julho a
Secretaria de Turismo, que organizava o concurso junto com a Rede Globo, fez o
anúncio das 23 músicas selecionadas para o 6º FIC. Tudo corria bem, a
divulgação do evento já estava sendo feita, dentro e fora do país, quando
chegou uma notícia que pegou a todos de surpresa: a Polícia Federal queria
informações detalhadas de todas as pessoas que fossem participar do festival e
isso incluía cantores, compositores, arranjadores e até mesmo dos ajudantes.
Eles queriam essas informações com a desculpa de que precisavam fazer uma carteirinha
de identificação dos participantes.
Indignados
com a situação, e com essa coisa de carteirinha, os artistas revoltaram-se e
enviaram uma carta conjunta endereçada a direção do FIC ameaçando não
participar do festival. Paulinho da Viola, Tom Jobim, Vinicius de Moraes e
Chico Buarque, estavam entre os que assinaram a carta.
Criou-se
uma situação embaraçosa para a Secretaria de Turismo e para a Rede Globo, uma
vez que sem a participação dos artistas não haveria festival e, por outro lado,
o governo não permitia que o festival fosse cancelado. Enfim, depois de muita
negociação, chegou-se a um consenso entre as partes e o festival foi realizado.
Resolvidas todas as questões o festival aconteceu em setembro, sendo as músicas
classificadas, apresentadas em duas eliminatórias no dias 24 e 25, sendo a
grande final no dia 26. A canção vencedora daquele festival foi Kyrie, uma canção da autoria de Paulinho
Soares e Marcelo Silva, apresentada pelo Trio Ternura.
O início da
perseguição
O
6º FIC marcou o início da perseguição do regime contra o artista Taiguara. Das
todas as músicas apresentadas a censura, em uma análise superficial, duas foram
logo vetadas: Pirambeira, de Hermínio
Bello de Carvalho e Maurício Tapajós e Corpos
nús, de Taiguara. Era apenas a primeira entre dezenas de músicas do artista
que não passariam pelo crivo dos censores.
Entre
os anos de 1965 — quando estreou no mercado musical, aos 19 anos, com o LP, Taiguara — em 1970, o cantor não foi
incomodava o sistema, pois nesse início de carreira, dedicava-se a compor e
gravar músicas românticas. Depois que aderiu a uma vertente na qual começou a
abordar temas proibidos pelos militares tais como política, sexo e drogas,
chamou para si a atenção dos censores e a perseguição começou para valer. Ao
todo, foram 81 músicas censuradas, incluindo dois discos vetados por completo: Let the children hear the music (1974) e
Imyra, Tayra, Ipy, Taiguara (1975). Somente
em 2013, o disco foi reeditado e relançado no mercado brasileiro, pela
gravadora Kuarup.
No
ano de 1973, Taiguara já acumulava diversas músicas censuradas. Nesse ano
firmara contrato com a gravadora para lançar o disco Fotografias, quando, mais uma vez, mais uma vez a censura vetou
algumas músicas. Em Nova York, uma
das músicas vetadas, o compositor conseguiu driblar os censores. Ele usara na
música uma figura de linguagem chamada aliteração — essa figura de linguagem
consiste na repetição de determinados sons consonantais idênticos ou
semelhantes. Na década de 80, o cantor relataria o episódio durante a turnê do
show, Treze Outubros:
—
Sim, meu filho, você colocou aqui: Pão. Pó. Pedra. Polícia. E a poluição. E nós somos a polícia, meu filho. Não
fica bem.
—
Dona Marina, isso é uma aliteração. A senhora sabe o que é uma aliteração. Que
tal, para deixar bem claro que eu não me refiro a nossa polícia, não tenho nada
contra a nossa polícia, dona Marina, eu me refiro à de Nova York. Se, em vez
cantar a palavra em português, eu cantasse em inglês?
Dona
Marina, coçou o queixo, olhou para Sá, companheiro de censura dela, e
perguntou:
—
O que você acha, Sá?
—
Não sei, Marina, pede para ele cantar. Disse Sá, coçando o bigode.
Ficaria
assim, dona Marina, disse eu, e cantei:
—
Você paga o pão, o pó, a pedra, a police
e a poluição.
Os
censores aceitaram a mudança e a música foi gravada no disco.
A
perseguição dos militares a Taiguara, entretanto, não se restringia a vetar
suas músicas e impedir a venda de seus discos, eles também monitoravam os shows
do artista. Em qualquer cidade do país na qual o cantor estivesse se
apresentando, lá estavam também os olhos e ouvidos dos agentes da ditadura.
Através de ameaças ao público que assistiria aos shows, eles conseguiam que
apresentações fossem canceladas. Os militares também tinham forças para
cancelar as entrevistas agendadas com o astro.
Cansado
de tudo isso, Taiguara deixar o país através do Porto de Vitória, no ano de
1974, quando saiu do Brasil levando sua recém-esposa e seu amigo inseparável: o
piano. Muitos artistas também seguiram o mesmo caminho de Taiguara, saindo do
país. Às vezes por vontade própria, outras vezes, por imposição dos militares.
Em Londres:
Muito trabalho e mais um disco censurado
O
uruguaio-brasileiro, não foi à Londres para um passeio turístico. Aproveitou o
rico ambiente cultural que rondava a cidade, e matriculou-se na
conceituada Guildhall School of Music
& Drama. Não abandonou também a rotina de composições e ensaios. Era
convidado para apresentar-se nos bares londrinos e não perdia a oportunidade de
mostrar sua arte. Sua sede de aperfeiçoar seus conhecimentos musicais acabaria
por tornar seu trabalho ainda mais rico e diversificado. Taiguara também não
perdeu tempo em aumentar seu círculo de amizades e aproximou-se de figuras
importantes no cenário musical internacional, como por exemplo, Jonh Cameron,
compositor e arranjador das trilhas hollywooddianas.
Também
em Londres, Taiguara gravou pelo selo KPM, o álbum Let the Children Hear the Music. Na verdade, a música que inspirou
o título do disco gravado em inglês, já havia sido gravada em seu último disco,
Fotografias, sob o título, Que as crianças cantem livres. O cantor
e os advogados da emissora, acreditavam que os braços terríveis da ditadura não
conseguiriam alcançá-los em outro país. É possível que o artista tenha ido à
Londres gravar esse disco, pensando em fazer músicas contra o regime, e
comunicar-se com o público brasileiro em outra língua. O monstro da ditadura
porém tinha seus truques para caçar suas presas em terras estrangeiras. Eles
enviaram a EMI-Odeon, uma ordem de veto total ao disco. Com isso, o talento e a
criatividade de Taiguara foram podados, mais uma vez.
A volta ao
Brasil… E mais um disco vetado
Taiguara
retornou ao Brasil em 1975 e logo retomou os trabalhos preparativos para o
lançamento do disco Imyra, Tayara, Ipy e
Taiguara, disco que havia começado a preparar entre os anos de 73 e 74.
Para muitos críticos, esse é o trabalho mais significativo e um dos mais belos
da carreira de Taiguara. Nele, o artista faz uma mistura de diversos estilos,
como bossa-nova, jazz, com elementos da cultura africana, indígena e ibero-americana. O disco resultou em uma obra-prima. Nesse trabalho, a preocupação com as
questões políticas e sociais se fizeram mais fortes, mais presentes. Foi um
trabalho grandioso, que exigiu muito trabalho e dedicação. Os melhores
representantes da música, mineira, paulista e carioca estiveram envolvidos na
tarefa. O grande compositor e arranjador, Hermeto Pachoal também participou do
projeto. Em 1976, o trabalho estava pronto.
Obvio,
os militares também estavam vigiando todos os passos dessa atividade... E dessa
vez, agiram com requintes de crueldade. Esperam o disco ser gravado, prensado e
distribuído. Quando o disco já começava a chegar às prateleiras das lojas, veio
a ordem para que fosse recolhido. Para surpresa geral, a censura havia vetado
todas as músicas, a produção, distribuição, divulgação e comercialização do
trabalho. Gravadora e artistas tiveram enorme prejuízo financeiro, sem contar
as horas de trabalho perdidas.
Diante
de mais uma decepção, Taiguara embarca mais uma vez para a Europa, em mais um
autoexílio. Ele já estivera em terras europeias por duas vezes: em 1972, quando
fez uma turnê por Londres, Paris e Roma e em 1974, por ocasião de seu primeiro
autoexílio. Dessa vez, sua viagem foi mais longa. Inicialmente, ele foi à
Londres, Paris e Genebra, seguindo depois para o continente africano.
Um Taiguara
diferente volta do auto-exílio na África
Após
esse autoexílio por terras europeias e africana, um novo Taiguara desembarcou
em terras brasileiras em 1977. Essa mudança se refletia no seu jeito de vestir,
antes ele gostava de usar roupas exóticas e coloridas, que lembravam os hippies
e a contracultura. Agora seu figurino estava sóbrio. Tornou-se radical em
relação as questões políticas e sociais. Estávamos no final da década de 70 e o
regime ditatorial começava a perder forças. Foi justamente nesse período que
Taiguara tornou-se um ser político mais engajado. Afastou-se do palco por algum
tempo, alegando que enquanto suas músicas fossem motivo de veto, ele não
cantaria mais. Nesse meio tempo, dedicou-se às atividades jornalísticas e a
militância em organizações de esquerda. Em 1984, participou da campanha pelas Diretas Já, ao lado de Tancredo Neves.
Foi
nesse período de distanciamento dos palcos que Taiguara conheceu e tornou-se
amigo de Luís Carlos Preste, uma lenda em meio aos movimentos revolucionários
de esquerda, organizador da famosa Coluna Prestes. A aproximação a Prestes, fez
com que a vigilância dos militares à Taiguara fosse redobrada. Eles o vigiavam
cada passo seu, dia e noite. Afinal, a maior tarefa dos militares era vigiar
comunistas, e Prestes era o maior deles. Taiguara e a família passaram a
receber ameaças de morte e sequestro.
Em
meados dos anos 80, convencido pela família, o artista resolve retomar a
carreira musical. Nessa época, o contrato dele com EMI-Odeon já havia terminado
e ele tentou uma aproximação com a Continental. Por esse selo ele lançou o disco
Canções de amor e liberdade. Era o
seu retorno aos discos após nove anos de ausência. O artista havia-se tornado
tão radical que ele mesmo foi obstáculo ao sucesso de sua obra. Querendo
afastar-se dos padrões da indústria capitalista, Taiguara exigiu que seu disco
fosse lançado, durante uma coletiva de imprensa no Morro do Borel, comunidade
de baixa renda do Rio, deixando de lado os ambientes finos e requintados. Essa
estratégia de marketing e também o fato de que disco e público-alvo estavam em
universos diferentes, não ajudou muito na comercialização do disco e as
vendagens foram muito fracas.
Os
fãs do astro ficaram um pouco confusos com o estilo musical do cantor. Eles
estavam acostumados com as belas letras românticas ou com as questões políticas
e sociais, diluídas nas canções. Dessa vez não, a mensagem política estava bem
explicita, mensagens muito diretas.
A luta contra o
câncer
Veio
o ano de 1987 e Taiguara casou-se novamente. Com a nova esposa, Ana Lasevicius,
foi pai de Lenine Guarani. O Brasil já saíra dos horrores da ditadura e
caminhava para a liberdade. Entretanto, a situação financeira do país não era
das melhores. Economicamente, o país atravessava um clima de estagnação. A
inflação e o desemprego estavam altos. O país também enfrentava o pesadelo de
uma divida externa. Em 1989, Fernando Collor de Melo foi eleito para a
presidência da República e, no ano seguinte, confiscou o dinheiro de todos os
brasileiros que haviam aplicado dinheiro em cadernetas de poupança. O país inteiro,
praticamente, parou. Muitas empresas faliram e houve casos de suicido de
pessoas inconformadas com a situação. A situação também afetou o mercado dos
discos. A venda de LPs caiu.
O
fato é que, em meio a tudo isso, Taiguara era uma estrela que havia perdido o
brilho. Depois de tantas idas e vindas e de ter sua criatividade ceifada pelo
regime militar, pouca gente se lembrava de quem fora e quão criativo fora o
Taiguara do início de carreira. Muitos que o haviam admirado pelas suas canções
românticas, não o reconheciam em um estilo radicalmente politizado. Enquanto os
outros artistas que, como ele, haviam passado pelo crivo da censura voltavam a
gravar músicas românticas, Taiguara ia na contra mão, gravando músicas
altamente politizadas, quase panfletárias.
Em
1989, Taiguara foi diagnosticado com câncer na bexiga. Certa teimosia o impediu
de admitir que estivesse doente. Por causa disso, demorou para que começasse os
tratamentos contra a doença. Enfim, a doença já se fazia inegável e ele
resolveu ir á Cuba para o início do tratamento. O tratamento, aparentemente,
surtiu efeito, e ele retornou ao Brasil. Porém, o tipo de câncer que o havia
acometido era extremamente agressivo e a doença voltou a se manifestar
novamente, de forma ainda mais grave do que na primeira fase. Debilitado pela doença,
já não podia fazer longas viagens e teve que se tratar no Hospital Sírio
Libanês, em São Paulo.
No
dia 14 de junho de 1996, finalmente, após as lutas, primeiro contra a censura,
e depois contra o câncer, Taiguara descansou em paz.
Postar um comentário