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O dia da libertação dos escravos através do olhar de Lima Barreto
Posted by Cottidianos
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11:32
Terça-feira,
13 de maio
Imagem: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lima_Barreto |
Afonso
Henriques de Lima Barreto (1881-1922), escritor e jornalista brasileiro, nasceu
no Rio de Janeiro, no dia 13 de maio de 1881, e morreu também no Rio, em 1o
de novembro de 1922, aos 41 anos de idade. Filho de pais pobres e
mestiços, sofreu preconceito durante toda a vida por causa de sua cor. Muito
cedo ficou órfão de mãe. Nota-se de modo muito forte, na obra de Lima Barreto,
uma grande preocupação em retratar fatos sociais e costumes de época, costumes
esses reveladores da vida cotidiana dos trabalhadores das classes menos favorecidas.
Com seu estilo fluente de crítica social, Lima Barreto entra em confronto com a
classe dominante da época nas dimensões da sociedade: econômica, política, social
e cultural. Passando sua obra a ser considerada, em sua época, marginalizada na
cultura brasileira.
Quando
ocorreu o grandioso momento da abolição, em 13 de maio de 1888, o menino Lima
Barreto, estava com sete anos. Desde menino, atento a realidade que o cercava
guardou na lembrança a festa da libertação oficial dos escravos brasileiros,
mesmo que não compreendesse bem o que realmente estava ocorrendo, nem a
importância do fato. Então criança, ele pensava, como devem ter pensado todas
as crianças da época: “Oba, ‘tá todo mundo livre. Agora podemos fazer o que
quiser”.
Em
1911, já com 30 anos, ele relata essas lembranças em uma crônica, publicada no
jornal Gazeta da Tarde.
As ideias de Lima Barreto, que passavam bem longe da mediocridade de muitos de seus
contemporâneos, causou-lhe conflitos que o levaram a caminhos indesejados como
álcool. Esses constantes conflitos entre seu mundo interior e as ideias
dominantes na época fizeram com que fosse levado duas vezes ao hospital por
causa de crises depressivas. Morreu em 1o de novembro de 1922,
vítima de um ataque cardíaco.
Abaixo
compartilho com vocês um depoimento de quem viveu o dia da libertação oficial
da escravatura.
Essa
e outras crônicas de Lima Barreto foram publicadas no livro Antologia
de artigos, cartas e crônicas sobre trabalhadores, publicado em 2012, pela
Editora Viva Voz.
***
Maio
Gazeta
da Tarde | 4-5-1911
Estamos
em maio, o mês das flores, o mês sagrado pela poesia. Não é sem emoção que o
vejo entrar. Há em minha alma um renovamento; as ambições desabrocham de novo
e, de novo, me chegam revoadas de sonhos. Nasci sob o seu signo, a treze, e
creio que em sexta-feira; e, por isso, também à emoção que o mês sagrado me
traz se misturam recordações da minha meninice.
Agora
mesmo estou a lembrar-me que, em 1888, dias antes da data áurea, meu pai chegou
em casa e disse-me: a lei da abolição vai passar no dia de teus anos. E de fato
passou; e nós fomos esperar a assinatura no Largo do Paço.
Na
minha lembrança desses acontecimentos, o edifício do antigo paço, hoje
repartição dos Telégrafos, fica muito alto, um sky-scraper (arranha-céu); e lá de uma das janelas eu
vejo um homem que acena para o povo.
Não
me recordo bem se ele falou e não sou capaz de afirmar se era mesmo o grande
Patrocínio.
Havia
uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do velho casarão.
Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o
souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com lenço,
vivas...
Fazia
sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria.
Era
geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação,
deram-me uma visão da vida inteiramente festa e harmonia.
Houve
missa campal no Campo de São Cristóvão. Eu fui também com meu pai; mas pouco me
recordo dela, a não ser lembrar-me que, ao assisti-la, me vinha aos olhos a
“Primeira Missa”, de Vítor Meireles.
Era
como se o Brasil tivesse sido descoberto outra vez... Houve o barulho de bandas
de música, de bombas e girândolas, indispensável aos nossos regozijos; e houve
também préstitos cívicos. Anjos despedaçando grilhões, alegorias toscas
passaram lentamente pelas ruas. Construíram-se estrados para bailes populares;
houve desfile de batalhões escolares e eu me lembro que vi a princesa imperial,
na porta da atual Prefeitura, cercada de filhos, assistindo àquela fileira de
numerosos soldados desfiar devagar. Devia ser de tarde, ao anoitecer.
Ela
me parecia loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e apiedado. Nunca
mais a vi e o imperador nunca vi, mas me lembro dos seus carros, aqueles
enormes carros dourados, puxados por quatro cavalos, com cocheiros montados e
um criado à traseira.
Eu
tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o
horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa
escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam,
faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem
os aspectos hediondos.
Era
bom saber se a alegria que trouxe à cidade a lei da abolição foi geral pelo
país. Havia de ser, porque já tinha entrado na consciência de todos a injustiça
originária da escravidão.
Quando
fui para o colégio, um colégio público, à Rua do Resende, a alegria entre a
criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente
nos tinha tomado.
A professora, Dona Teresa Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, a quem muito deve o meu espírito, creio que nos explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! livre!
Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia.
Parece que essa convicção era geral na meninada, porquanto um colega meu, depois de um castigo, me disse: “Vou dizer a papai que não quero voltar mais ao colégio. Não somos todos livres?”.
Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!
A professora, Dona Teresa Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, a quem muito deve o meu espírito, creio que nos explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! livre!
Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia.
Parece que essa convicção era geral na meninada, porquanto um colega meu, depois de um castigo, me disse: “Vou dizer a papai que não quero voltar mais ao colégio. Não somos todos livres?”.
Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!
Dos
jornais e folhetos distribuídos por aquela ocasião, eu me lembro de um pequeno
jornal, publicado pelos tipógrafos da Casa Lombaerts. Estava bem-impresso,
tinha umas vinhetas elzevirianas, pequenos artigos e sonetos. Desses, dois eram
dedicados a José do Patrocínio e o outro à princesa. Eu me lembro, foi a minha
primeira emoção poética a leitura dele. Intitulava-se “Princesa e Mãe” e ainda
tenho de memória um dos versos:
Houve
um tempo, senhora, há muito já passado...
São
boas essas recordações; elas têm um perfume de saudade e fazem com que sintamos
a eternidade do tempo.
Oh!
O tempo! O inflexível tempo, que como o Amor, é também irmão da Morte, vai
ceifando aspirações, tirando presunções, trazendo desalentos, e só nos deixa na
alma essa saudade do passado às vezes composta de coisas fúteis, cujo
relembrar, porém, traz sempre prazer.
Quanta
ambição ele não mata! Primeiro são os sonhos de posição: com os dias e as horas
e, a pouco e pouco, a gente vai descendo de ministro a
amanuense; depois são os do Amor – oh! como se desce nesses! Os de saber, de
erudição, vão caindo até ficarem reduzidos ao bondoso Larousse. Viagens... Oh!
As viagens! Ficamos a fazê-las nos nossos pobres quartos, com auxílio do Baedecker
e outros livros complacentes.
Obras,
satisfações, glórias, tudo se esvai e se esbate. Pelos trinta anos, a gente que
se julgava Shakespeare, está crente que não passa de um “Mal das Vinhas”
qualquer; tenazmente, porém, ficamos a viver, esperando, esperando... O quê? O
imprevisto, o que pode acontecer amanhã ou depois. Esperando os milagres do
tempo e olhando o céu vazio de Deus ou deuses, mas sempre olhando para ele,
como o filósofo Guyau.
Esperando,
quem sabe se a sorte grande ou um tesouro oculto no quintal? E maio volta... Há
pelo ar blandícias e afagos; as coisas ligeiras têm mais poesia; os pássaros
como que cantam melhor; o verde das encostas é mais macio; um forte flux de
vida percorre e anima tudo...
O
mês augusto e sagrado pela poesia e pela arte, jungido eternamente à marcha da
Terra, volta; e os galhos da nossa alma que tinham sido amputados – os sonhos,
enchem-se de brotos muito verdes, de um claro e macio verde de pelúcia,
reverdecem mais uma vez, para de novo perderem as folhas, secarem, antes mesmo
de chegar o tórrido dezembro.
E
assim se faz a vida, com desalentos e esperanças, com recordações e saudades,
com tolices e coisas sensatas, com baixezas e grandezas, à espera da morte, da
doce morte, padroeira dos aflitos e desesperados...
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