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A luz que vem da Capoeira Angola
Posted by Cottidianos
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20:50
Quinta-feira,
10 de abril
“Formado o conjunto musical, o Berimbau
solista ou chefe, de acordo com o ritmo que se deseja, dá início aos primeiros
compassos sendo, a seguir, acompanhando pelos demais instrumentos rítmicos.
Decorrido algum tempo, o cantor solista vai cantando e os outros componentes do
conjunto respondem, em coro, aos seus versos que podem ser de improviso. Os
capoeiristas que vão fazer a demonstração se apresentam à frente do conjunto,
acocorados, “ao pé do Berimbau”, ouvindo, respeitosamente, os cantores...
Passados alguns minutos, o Berimbau solista indica o início do “jogo”. Os
capoeiristas se benzem, religiosamente, e saem, na posição em que se encontram,
girando o corpo no sentido do adversário, iniciando o “jogo de baixo” com seus
movimentos rasteiros característicos”.
(Trecho
do livro Capoeira Angola, de Mestre Pastinha)
***
Era
sábado, 05 de abril, e eu passava casualmente, na praça que fica em frente à Catedral Metropolitana de Campinas – que se encontra em obras de restauro -
quando vi, formada ali, uma roda de capoeira. Aproximei-me e logo vi o Mestre
Topete, a quem já tinha entrevistado. Nos cumprimentamos e o Mestre falou:
“Tem roda de capoeira, faz uma reportagem sobre isso”. Estava com sacolas de
compra nas mãos, pois havia acabado de passar no supermercado. Eu disse:
“Mestre, vou em casa guardar as sacolas e buscar a maquina fotográfica. Meia
hora mais tarde, estava de volta com as mãos livres e o coração aberto para ver
a beleza que é uma roda de capoeira.
Terminada
a apresentação fui conversar com Mestre Topete e, por ele, fiquei sabendo que
aquela era uma roda de capoeira especial, pois celebrava os 125 anos do
nascimento de Mestre Pastinha, um mito no mundo da capoeira. Cito as palavras
textuais de Mestre Topete: “A comemoração é 05 de abril, dia do nascimento de
Mestre Pastinha, que é o Patrono da Capoeira Angola. A gente realizou eventos
durante a semana inteira, com a roda nos núcleos. Iniciamos na cidade de
Hortolândia, na segunda, terça, na moradia da Unicamp, quarta na cidade de
Pirassununga, quinta, novamente em Hortolândia, sexta, na Estação Cultura, hoje (sábado) aqui (em frente a Catedral) e
amanhã (domingo/06), no Taquaral, das 10h ao meio dia. Recebemos convidados das
cidades de Taboão da Serra, Registro, Campinas e Americana”.
Ao
final da apresentação, o Mestre Topete abriu a palavra aos convidados, fiquei
observando os discursos, todos muito bem colocados. Notei que o jovem
Contra-Mestre, Indío Nascimento, 36 anos, da cidade de Taboão da Serra, formado
pelo Mestre Marrom, falou muito bem a respeito de Mestre Pastinha e
perguntei-lhe se ele poderia falar do Pastinha ao Cottidianos. Pedido que ele, gentilmente, atendeu. “Mestre Pastinha
é um nome muito grande dentro da capoeira porque ele foi uma pessoa
organizadora. Um senhor de 1,65 m de altura, porte pequeno, mas tinha uma visão
de cultura dentro da capoeira, ele via a capoeira, não só como um ato de jogar
as pernas para cima, mas sim como fator agregador, que unia as pessoas, ele
queria mostrar para as pessoas que elas podem viver com hombridade através da
capoeira. Mestre Pastinha foi o organizador da Capoeira Angola, se não fosse
Mestre Pastinha, e outros grandes mestres, não existia essa capoeira que existe
hoje no Brasil e no mundo. Porque a Capoeira Angola não é praticada somente no
Brasil, existe Capoeira Angola no mundo inteiro. Existe, por exemplo, Capoeira
em vários lugares da Europa”., com essas palavras Mestre Índio se expressou a
respeito do Patrono da Capoeira Angola.
Senti
muita energia e vibração naquela roda de capoeira e isso me deixou muito feliz,
acredito que Mestre Pastinha, de algum lugar do mundo espiritual, também ficou
emocionado, ao ver que seus discípulos continuam desenvolvendo, de forma
brilhante, o seu legado.
Parabéns
ao Mestre Topete e a todos os Mestres e alunos presentes naquela roda de
capoeira. Inspirado nela, escrevi o texto a seguir, que vai dedicado a todos os
que fazem da Capoeira Angola sua filosofia de vida.
***
A luz que vem da Capoeira Angola
“Vou mimbora pra Bahia, Paraná
Eu
aqui não fico não, Paraná
Paraná
ê, Paraná ê, Paraná
Se
não for essa semana, Paraná
E'
a semana que vem, Paraná
Paraná
ê, Paraná ê, Paraná
A
luz que vem da Capoeira Angola”.
O
toque lamentoso e místico de um Berimbau soou na Bahia de todos os santos, em
fins do século XIX e foi ouvido por mim, na cidade de Campinas nos dias
atuais...
Capoeira quem és?
Sou
a ginga de teus movimentos, o ritmo de teu corpo, o suor que escorre pelas
tuas faces após o toque vibrante do berimbau. Sou tua vontade de transcender o
topor que te faz caminhar nos escuros corredores de um viver obscuro. Sou a
filha iluminada, gerada no solo sagrado de mãe África e trazida para uma terra
distante e desconhecida, que depois vim a saber que se chamava, primeiramente, Ilha
de Vera Cruz, depois Terra de Santa Cruz
e, por fim, o pomposo nome de Brasil.
Vim
no ventre de minha mãe, tal qual semente preparada para crescer distante de
minhas origens. Cruzei mares e oceanos, não no luxo destinado às primeiras
classes, mas nos fétidos porões dos tumbeiros, ou navios negreiros – nome dados
aos navios que transportavam milhões de africanos para o torrão brasileiro.
Espremidos
naqueles infernos subterrâneos, entre as águas misteriosas e profundas de
Yemanjá e o eterno céu de Oxalá, somente sobreviviam os mais fortes. Expostos à
fome, à sede e à falta de higiene, os negros eram presas fáceis de toda espécie de
doenças e epidemias. Quando acontecia de algum cativo morrer - e muitos morreram
naquelas penosas travessias - o cemitério de seus corpos era o mar. Corpos que,
após terem descidos ao inferno ainda em vida, finalmente, descansavam nas águas
acolhedoras da rainha do mar, enquanto suas nobres almas subiam para a
iluminada Aruanda, cidade de luz.
Eu
sobrevivi a todas essas provações. Era uma só, entretanto,
era muitas vivendo em vários ventres. Também não tinha um só pai: vivia na
esperança de liberdade que pulsava no coração de cada homem cativo.
Eu,
Capoeira, pequeno feto, sendo esperado com ansiedade. Eu pequeno raio de
esperança, trazia um desejo em meu coração, um não querer deixar por todo o
sempre, minhas raízes fincadas, apenas, no solo africano que, a cada lua, se
tornava cada vez mais distante.
Depois
desse doloroso calvário, morte e ressurreição, cheguei a uma terra de beleza
esplendida. Cheguei até a pensar que havia morrido e havia sido levada pelas
mãos dos anjos aos portais celestiais.
Porém, a notícia era melhor do que eu esperava: Eu estava viva e o
paraíso era real.
Bahia,
esse era o nome do pedaço de chão no qual meu povo havia desembarcado.
Impossível descrever aquele tom de azul do céu que se descortinava no
horizonte. O mar! Que rara beleza! Que águas mornas e reconfortantes. Tinham um
tom esverdeado que me lembrava das esmeraldas que nos foram roubadas na África.
O sol possuía uma luminosidade que lembrava o ouro e era um astro radioso desde
que nascia até a hora quem desaparecia no horizonte. As matas, meu Deus, que
maravilha! Oxalá seja louvado por elas. Nem a mais bela das rainhas das tribos
africanas jamais se vestiu com mantos tão verdes. Quão rica era a nova
terra!... E muito generosa também. Uma fartura sem conta de frutos silvestres e
uma infinidade de flores e plantas exóticas. A bela paisagem extasiava e curava o olhar cansado da escuridão dos porões dos tumbeiros. A brisa mansa, tal qual
música suave, fazia esquecer os gemidos e lamentos tão constantes nos navios
negreiros.
Meu
povo de Angola trazia correntes nos pés e no pescoço, feito bichos. A beleza da
nova terra era tão intensa que, apesar das grossas correntes que nos limitavam
os movimentos, fazia nascer no coração um profundo desejo de liberdade.
Levados
para o trabalho nas fazendas, pouco restava ao meu povo, senão uns breves
momentos de lazer. Aproveitávamos esses momentos para praticar as lutas que
havíamos deixado para trás. E foi assim que nasci em solo brasileiro. Aqui me
desenvolvi e me aperfeiçoei com a criação de novos passos, e novas gingas.
Enfrentei dilemas e aprendi, de um jeito malandro, a vencer todos.
Por
exemplo, não podíamos fazer uso de armas de qualquer espécie. Se algum cativo fosse
pego com alguma arma, logo era chicoteado. Igualmente não podíamos fazer
qualquer tipo de luta. O castigo era o mesmo para ambos os casos. Restava a mim
mesma, disfarçar-me de dança, folguedo.
Quando algum feitor via aquela roda e se achegava de nós perguntando o
que estava acontecendo, dizíamos: “Estamos brincando, nos divertindo. Tirando
um pouco do cansaço de nossos corpos”. Mais tarde usaria essa desculpa para
enganar os policias que nos viam reunidos, praticando capoeira, pelas ruas de
Salvador. Assim, nasci em solo brasileiro, em meio à todas essas dificuldades.
Eu havia sido gerada na África e nasci no Brasil, portanto, nem posso dizer que
sou africana nem brasileira, acho melhor me denominar Afro-Brasileira. Como vim com uma tribo que foi capturada em
Angola, me chamo também Capoeira Angola.
Mestre
Pastinha
Imagem: http://grupocalunga.blogspot.com.br/p/mestre-pastinha.html |
Eu
já existia de fato, era preciso, entretanto, fazer nascer, dentre os
brasileiros, alguém que se encarregasse de espalhar a minha semente pelo mundo
afora, uma espécie de profeta, um filosofo.
Na verdade, não existe profeta que não seja filosofo, nem filosofo que
não seja profeta. Escolhi meu predestinado aqui mesmo, na Bahia. Não o escolhi
dentre os mais fortes, escolhi-o dentre os mais fracos para fazer dele um
forte.
O
menino nasceu no dia 05 de abril de 1889 e recebeu o nome de Vicente Ferreira
Pastinha, filho de José Senor Pastinha e Maria Eugênia Ferreira, uma negra
natural de Santo Amaro da Purificação. José Senor era um pequeno comerciante e
Maria Eugênia vendia acarajé e lavava roupas para complementar o orçamento da
família.
O
meu predestinado eu já tinha. Era preciso arranjar um mestre para treiná-lo.
Para essa missão eu convoquei Benedito, um negro africano. O menino,
entretanto, só poderia desenvolver os dons aos dez anos, quando já tivesse certa
consciência de que aquela era a missão para ele escolhida.
Assim
foi crescendo o pequeno Vicente Pastinha. Por volta dos dez anos de idade,
apareceu na vida do pequeno Pastinha, um rival, um menino mais velho e mais
forte que ele. Bastava Pastinha sair à rua e encontrar o rival que os dois
brigavam. Nessas lutas, invariavelmente, o pequeno predestinado apanhava.
Depois, procurava um lugar escondido onde pudesse chorar de vergonha e de raiva
por ter, novamente, apanhado.
Certo
dia, os meninos brigavam na rua como de costume. Porém aquele dia o olhar de um
velho africano acompanhava toda a cena, em uma janela próxima dali. Quando
Pastinha passou em frente à janela onde estava Benedito, o velho africano, este
chamou o menino e lhe disse:
_
Você não pode lutar com esse menino. Ele é maior e mais forte que você. O que
você costuma fazer á tarde?
_
Empinar pipa.
_
Então, em vez de ficar perdendo tempo empinando pipa, volte aqui hoje à tarde.
Quero lhe ensinar algo de grande valia.
O
pequeno Pastinha voltou naquela tarde... E em muitas outras. Passava as tardes
inteiras sendo iniciado na capoeira, em um velho sobrado, na Rua do Tijolo, em
Salvador. Naqueles treinos, o velho Benedito ensinou ao menino, não apenas a
arte da capoeira, ensinou-lhe também a ser forte, vencedor... E acima de tudo,
a fazer do próprio corpo uma arma e da mente, um mar de serenidade.
Depois
de algumas aulas, Pastinha já estava pronto para enfrentar o rival. Um dia,
passando em frente à casa de seu algoz, ouviu a mãe dele dizer: “Aí vem o seu
camarada”. Ao ouvir isso, Honorato – que era como se chamava o rival – correu
para fora de casa pronto para brigar. Quando o rival desferiu o primeiro golpe,
Pastinha se esquivou. Na segunda tentativa aconteceu a mesma coisa. Então
Honorato perguntou surpreso: “Ah, então você está vivo”? Quando ele tentou
desferir um terceiro golpe, o pequeno iniciado rebateu-lhe a mão e lhe acertou
um golpe com os pés, finalizando a luta.
Naquele
dia, Pastinha perdeu um rival e ganhou um amigo, pois Honorato passou a tratá-lo
com grande admiração e respeito... E o mundo ganhou, não apenas um lutador de
capoeira, mas um de seus melhores mestres e teóricos. Mas do que uma luta,
Mestre Pastinha transformou a capoeira numa filosofia de vida.
(Quem quiser conferir a entrevista que fiz com
Mestre Topete, na postagem de 07 de dezembro de 2013, segue link: http://www.cottidianos.blogspot.com.br/search?q=entrevista+mestre+topete&search=Search )
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