Sábado,
19 de abril
A
202 km do Recife, situada entre exuberante vegetação e inúmeras serras,
situa-se a cidade de Brejo da Madre de Deus. Um clima frio, uma terra árida e
belas formações rochosas fazem da região um ótimo cenário para a realização de
filmes e grandes espetáculos teatrais. Esse pedaço de chão pernambucano é tão
especial que é capaz de nos fazer retroceder no tempo, em um espaço de dois mil,
e viajarmos pela região da Judéia, na época em que andou por lá um homem da
região da Galileia. Era homem simples, sem estudos, sem nenhum diploma ou curso
universitário, mas que em sua grande sabedoria incomodava sacerdotes e
políticos da época com um discurso inovador que colocava o homem como centro do
amor divino e não mais a lei e os costumes, prática até então comum, na
religiosidade judaica.
Essa
viagem ao tempo em que Jesus esteve, fisicamente, entre nós, acontece em um distrito
da cidade de Brejo de Madre Deus, chamado Fazenda Nova. Nesse pequeno lugarejo,
acontece o maior espetáculo de teatro ao ar livre do mundo. No local foi
construída uma cidade-teatro chamada, Nova Jerusalém, que é uma réplica da região
da Judéia no tempo de Cristo. Uma muralha de 3.500 metros, 70 torres, lagos
artificiais, nove palcos, além das demais réplicas de construções da época,
como, por exemplo, o Templo de Jerusalém; Palácio de Herodes; Fórum Romano,
Horto das Oliveiras, dentre outros, tornam o projeto arquitetônico da obra algo
impressionante. Nesse ambiente é realizado, anualmente o magnífico, grandioso e
emocionante espetáculo da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo. Para usar uma
linguagem bastante comum em Hollywood: uma superprodução. Atores famosos
encenam os papeis principais e animais que farão parte da cena são treinados
para que a produção se torne ainda mais bela. O espetáculo atrai turistas de
diversos estados brasileiros e de vários países. Esse ano, o espetáculo
acontece entre os dias 12 a 19 de abril.
Um
questionamento me vem à mente: Quem foi esse homem que, depois de decorridos,
mais de dois mil anos de sua morte, ainda faz com que sua historia seja
revivida todos os anos e emocione plateias em todo o mundo? Um homem comum
jamais conseguiria tal feito. Somente um ser divino faria com que sua mensagem
atingisse tanta gente, em tantos lugares. A importância de Jesus Cristo é tão
grande que fugiu do aspecto religioso e dividiu a história, como Moisés,
segundo relatos do Velho Testamento, dividiu o Mar Vermelho em duas partes,
para que seu povo pudesse atravessá-lo. Basta obsevarmos como estão divididos
os períodos históricos: AC (antes de Cristo) e DC (depois de Cristo). Não seria
divino um homem que dobrou seu maior perseguidor, o poderoso Império Romano, que
após tantas perseguições aos cristãos, transformou o cristianismo em religião
oficial do Império Romano. Sendo, justamente, o Império Romano o sistema que havia
levado Jesus á cruz, em uma condenação e a pena injustas?
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Olhando
para a sociedade judaica nos tempos de Jesus podemos vislumbrar diferentes grupos
sociais que possuíam diferentes modos de compreender e de viver questões e
ideias, no campo da religião, da política e da economia. Esse foi o tecido social
no qual transitou o homem vindo dentre o povo humilde e simples das pequenas
aldeias da Galileia. Era com os integrantes desses grupos, em sua grande
maioria constituídos por pessoas altamente esclarecidas e politizadas, que
Jesus entrava em confronto no campo das ideias. Para as coisas ficaram mais claras
em nossa mente, basta levarmos em conta que hoje não é diferente de ontem: os
ricos e poderosos odeiam ser incomodados. Quando há pedra no caminho deles, eles
logo tratam de retirá-la, não importando se para isso tiverem que usar de meios
violentos e cruéis.
Dentre
esses grupos temos os Fariseus que se
caracterizavam pelo rigor no cumprimento e na observância das leis judaicas. Eram
absurdamente conservadores. O grupo era formado por leigos de diversas camadas
sociais, sendo que a maioria era de artesões e pequenos comerciantes. Também
faziam parte do grupo dos Fariseus, uma parte do clero, com menor poder
aquisitivo e que se opunham a elite dos sacerdotes.
Os
Doutores da Lei, também conhecidos
como Escribas eram pessoas de grande
prestígio na sociedade por dominarem o saber. Quando se queria fazer um debate
de alto nível sobre Escrituras, era a essa grupo que se tinha de recorrer. Áreas
como educação, administração e Direito, geralmente, ficavam a cargo dessas
pessoas. Eram referências, principalmente, em três lugares: escolas, sinagoga e
sinédrio. No primeiro, formavam novos discípulos, no segundo, interpretavam com
brilhantismo as escrituras e, no terceiro, eram exímios juristas na aplicação
da lei, tanto em questões governamentais quanto jurídicas.
O Saduceus, esses eram gente perigosa. Nesse
grupo estavam grandes latifundiários e a nata (a elite) da classe sacerdotal.
Também ontem como hoje, quem tem dinheiro e poder controla o mundo e a sociedade,
esse grupo tinha uma grande influência na sociedade em geral, justamente por
agregar esses dois fatores. Além disso, ficava a cargo deles a administração da
justiça, no Sinédrio (Tribunal Supremo), uma espécie de STF (Supremo Tribunal
Federal) da época. Havia entre eles uma grande preocupação em preservar seus
cargos e privilégios junto ao imperador. Conservadores ao extremo, aceitavam
apenas o que estava escrito na lei judaica, e chegou um tal de Jesus, falando
de lei de Deus. Isso era inadmissível para eles. Observando melhor esse grupo
fica fácil concluir que eram eles os maiores interessados na morte de Jesus
Cristo.
Além
desses grupos mais fortes, havia outros grupos que faziam parte da realidade
cotidiana de Cristo. Os Zelotas que
eram formados por pequenos camponeses e pelas camadas da sociedade com menor
poder aquisitivo. Era um grupo que dava trabalho para as lideranças da época, pois queriam
um Estado onde Deus, fosse o único rei, também eram, na Galileia, opositores do
governo de Herodes.
Os
Samaritanos eram um grupo arredio, não
se misturavam com os outros, nem frequentavam o Templo de Jerusalém. Para eles, lugar de culto era o monte Gazirim, perto de Siquém. Para eles também, o único
livro do Antigo Testamento que merecia crédito era o Pentateuco.
Os
Essênios eram uma espécie de
socialista da época. Viviam em comunidades afastadas de Jerusalém, em grutas e
lugares isolados. Possuíam um ideal de vida em comum e os bens eram divididos
entre todos, sendo proibido o comércio de produtos. O estilo de vida que
levavam era bastante severo e baseado na hierarquia religiosa que entre eles
existia. Apesar de levar uma vida retirada, por serem muito severos na
observância das normas e preceitos, assemelhavam-se em muito aos Fariseus.
Por
fim, havia os Herodianos (partidários
de Herodes), sobre esses nem é preciso dizer de que lado estavam, não é
verdade? Uma de suas funções era prender agitadores políticos e devem ter tido
bastante trabalho com os Zelotas. Eram a personificação em pessoa do poder
romano sobre o povo judeu.
E
o povo? Esse não tinha voz e nem vez. Tinha que cumprir suas obrigações e ser
submissos ao rei. Eram os excluídos da sociedade. Do pouco dinheiro que tinham
ainda eram obrigados a pagar altas taxas de impostos ao Império Romano.
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No
meio de todo esse caldeirão de ideias conservadoras e povo oprimido surge o
rebelde Jesus Cristo. Se a Lei dizia que não se podia trabalhar em dia de
sábado, Jesus e seus discípulos trabalhavam. Não podia sentar-e e comer com os
cobradores de impostos e pecadores, Jesus fazia exatamente isto. Conversar com
mulheres samaritanas? Nem pensar! Era totalmente antiético. Jesus não queria
nem saber disso. Uma vez, era quase meio dia, e Jesus, cansado da viagem,
sentou-se junto á fonte de Jacó, chegou uma mulher da Samaria para tirar água e
Jesus lhe pede: “Dá-me de beber”. A samaritana quase caiu para trás de tanto
susto. A partir daí, há um longo dialogo entre Jesus e a samaritana. Após algum
tempo quando os discípulos chegam e veem o mestre conversando com uma mulher samaritana,
são eles que quase caem para trás.
Se
os leprosos eram totalmente afastados da sociedade e tinham que viver em grutas
escuras e afastadas da cidade, não tinham problema, o mestre ia até eles.
Ou
seja, se havia uma palavra que não existia no vocabulário de Jesus Cristo, essa
palavra era discriminação. Jesus tratava bem a todos: fossem mulheres dedicadas
a vida doméstica ou fossem prostitutas, o carinho era o mesmo. Pobres, leprosos
e outras camadas discriminadas por parte da sociedade sempre encontravam uma
palavra de conforto e carinho por parte desse homem extraordinário. Ele ia
contra todos os valores preestabelecidos pela sociedade, pela lei e pela
cultura de sua época. Um homem assim assusta e confunde o sistema, sendo,
portanto, perigoso em qualquer tempo.
Irmã
Dorothy
De
dois mil anos para cá, quanto Jesus Cristos já não foram assassinados na pessoa
do pastor Martin Luther King Junior, defensor dos direitos civis do povo negro,
nos Estados Unidos. Na pessoa de Dom Oscar Romero, arcebispo de San Salvador,
também defensor da não-violência e dos direitos humanos, morto no altar,
enquanto celebrava uma missa, no dia 24 de março de 1980. Que dizer do Indiano
Mahatma Ghandi, defensor da não-violência, assassinado a tiros, em Nova Deli,
em 30 de janeiro de 1948.
E
a irmã Dorthy Stang, norte-americana, naturalizada brasileira, envolvida na
luta pela terra na Amazônia e morta com seis tiros na cabeça e cinco ao redor
do corpo? Era sete horas da manhã de 12 de fevereiro de 2005, e a irmã Dorothy
estava em missão, caminhando por uma estrada de terra de difícil acesso. Segundo
relatos de testemunhas, antes de efetuar os disparos que lhe fariam tombar por
terra, os assassinos da religiosa, perguntaram se ela estava armada, ao que ela
que ela respondeu sim, dizendo “Esta é a minha arma”, mostrando a eles a
Bíblia. Antes de ser baleada ainda leu alguns versículos do livro sagrado, sendo, sem seguida alvejada
pelos tiros que lhe tiraram a vida. Esses foram alguns casos, muitos outros
aconteceram pelo mundo afora.
O
sistema é implacável e não quer saber se o guerreiro é protestante, católico, hindu,
ou de qualquer outra religião, ele só não quer saber de quem venha perturbar a
sua ordem. Se o sistema é implacável, o desejo e sonho de um mundo onde reine a
paz e a igualdade é muito mais forte e aceso no coração daqueles que acreditam
que a verdade e o bem prevalecerão.
Fico
a pensar: Será que quando os atores encenam a Paixão de Cristo, no pequeno
distrito de Fazenda Nova, na cidade de Brejo de Madre de Deus, em meio às
belezas do agreste pernambucano, eles têm consciência de que estão revivendo
uma história tão forte e profunda que extrapola os limites da religião e se
estende pelas questões sociais e na luta pelos direitos humanos? Será que eles
têm a verdadeira consciência da força e do fascínio que esse homem-Deus,
chamado Jesus Cristo e a mensagem deixada por ele, exerce sobre a humanidade, a
ponto de tanto anos depois de sua morte, ainda inspirar pessoas a viver a e morrer
como ele?
E
em nós todos, que emoções esse rebelde, provocador, contestador e maravilhoso
ser divino provoca em nossa consciência e em nosso coração?