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Um ritual de passagem na Igreja Santa Rita de Cássia

Posted by Cottidianos on 00:19
Duas prostitutas foram até o rei e se apresentaram. Uma das mulheres disse:
_ Meu senhor, eu e esta mulher moramos na mesma casa. Eu tive um filho. Três dias depois que dei à luz, ela também teve uma criança. Não havia mais ninguém conosco. Nós estávamos sozinhas em casa. Aconteceu que, certa noite, essa mulher se deitou sobre o próprio filho, e ele morreu. Ela se levantou durante a noite e, enquanto eu dormia, pegou o meu filho que estava junto comigo, e o colocou ao lado dela. Depois, colocou do meu lado o seu filho morto. Quando eu acordei de manhã, para dar de mamar ao meu filho, vi que estava morto. Olhei bem e notei que não era o filho ao qual eu tinha dado à luz.

A outra mulher retrucou:

_ Não é verdade! O meu filho está vivo. O dela é que morreu.

A primeira contestou:

_ É mentira!  Seu filho está morto e o meu está vivo.

E começaram a discutir diante do rei. Então o rei interveio:

_ Tragam uma espada.

E levaram-lhe uma espada. O rei disse:

_ Cortem o menino vivo em duas partes e deem metade para cada uma.

Então a mãe do menino vivo, sentiu as entranhas se comoverem pelo filho, e suplicou:

_ Meu Senhor, dê a ela o menino vivo.  Não o mate.

A outra, porém, respondeu:

_  Nem para mim, nem para você. Dividam o menino ao meio.

O rei pensou por alguns segundos, então deu a sentença:

_ Entreguem o menino vivo à primeira mulher. “Não o matem”. Ela é a sua verdadeira mãe”.

***



Era noite de quarta-feira, 26 de março. Estava eu na Missa de Formatura dos alunos do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, que ocorria na Igreja de Santa Rita de Cássia.  Do lugar onde me encontrava, no coro da Igreja - lugar ao qual se chegava após subir alguns lances de uma escada em forma de caracol - juntamente com os demais integrantes do Coral PIO XI - que tinha sido o coral escolhido pela turma, para entoar os cânticos da missa – tinha uma visão geral da Igreja.


O padre já havia feito a leitura do evangelho e agora fazia o sermão, no qual referia-se ao  trecho do I Livro dos Reis, , capítulo 3, versículos 16 a 27, que abre esse texto, e que narra o sábio julgamento do rei Salomão. Aliás, uma alusão bem escolhida para formandos de um curso de Direito que se verão frente a frente com juízes, quando não serão eles mesmos a decidir questões importantes.

 O personagem bíblico, Salomão, do I Livro dos Reis, ainda era muito jovem quando se tornou rei.  Diz a bíblia que, certa noite, em sonho, Deus perguntou a Salomão:

_ Salomão, o que você quer que eu lhe dê.

Ao que Salomão respondeu:

_ Ensina-me a ouvir, para que eu saiba governar o teu povo e discernir entre o bem e o mal.

O julgamento de Salomão tem pouco de jurídico e muito de afetivo, e nem por isso o rei tomou uma injusta decisão, ao contrário, foi uma decisão baseada na sabedoria e no discernimento que brota do coração do homem justo. Enquanto o padre fazia estas considerações, eu pensava em quão escassos são os justos no mundo atual. E também em quão escassos são os que tomam decisões baseados na sabedoria do coração. O resultado dessa escassez de governantes, juízes e de outros setores da sociedade que agem sem o menor discernimento, se traduz em outras espécies de escassez; a de alimentos, de saúde, de educação, de gentileza, de compreensão e de outros itens que se traduzem em dignidade e benfeitorias para a humanidade.

Olhei para baixo, na direção dos bancos onde estavam os jovens aspirantes ao mundo do direito e da justiça. Estariam eles preparados para julgar com sabedoria e discernimento? Teriam aprendido na faculdade apenas formulas que ensinam como fazer peças jurídicas? Teriam apenas decorado centenas e centenas de artigos e leis? Seria o Direito, para eles, um ideal de vida a ser seguido e a ser perseguido pelos ambientes jurídicos? Ou seria o Direito, para eles, apenas uma máquina de fazer leis, muitas delas inócuas?

Enfim, eram questionamentos para os quais não tinha respostas naquele momento. Essas respostas estavam guardadas no santuário inviolável que é a consciência de cada um daqueles jovens que, atentamente, ouviam pregação.

A igreja Santa Rita de Cássia é um belo templo, localizado no bairro nobre de Nova Campinas, na cidade de Campinas, Estado de São Paulo. A paz e harmonia do lugar são um convite à elevação do espírito, um contraste com a movimentação constante dos automóveis que trafegam pela arborizada avenida, Jesuíno Marcondes Machado, que passa bem em frente á Igreja.  O designe moderno da Igreja com seu teto em forma de pirâmide está em plena sintonia com o ambiente religioso, no qual a aspiração daquele que medita é subir os degraus do sagrado e estabelecer uma conexão mais intima com o transcendente. A acústica do ambiente é perfeita, possibilitando uma boa audição em qualquer ponto da igreja. A pintura na cor branca externa e internamente confere um ar de graça e elegância ao templo.

Naquela noite, na Santa Rita de Cássia, vivia-se um momento de alegria, do qual os alunos da turma de Direito, eram os protagonistas. Os formandos, vestidos com elegância, estavam alegres e cheios de expectativas. A cada instante, em qualquer parte da igreja, pipocavam flashes. A presença dos amigos e familiares vinha realçar e coroar de felicidade esse belo momento. Naquela noite, naquela Igreja, realizavam-se dois rituais: um ritual religioso e um ritual de passagem.

Os rituais de passagem nasceram junto com a humanidade e, com ela, caminham até hoje. As sociedades primitivas realizavam seus ritos de passagem, e deixaram a herança para as sociedades modernas.  Esses rituais perpassam aspectos biológicos, emocionais, culturais e religiosos. A característica desses rituais e fechar um ciclo e iniciar outro. A formatura, por exemplo, encerra um ciclo de estudos básicos e abre uma porta na qual os formandos são lançados no mercado de trabalho, no qual irão colocar em prática o conhecimento adquirido nos bancos das universidades. Esse conhecimento, aliado a experiência adquirida nos embates da vida profissional, é que fará do jovem formando um excelente profissional. Conclui-se que, quanto mais conhecimento e experiência tiverem adquirido, tanto melhor e com mais segurança, o desenvolverão suas atividades profissionais.

Aquela missa de formatura que se realizava na Igreja Santa Rita de Cássia, apesar de toda alegria estampada nos rostos dos que participavam dela, guardava uma certa nota de tristeza. Para muitos dos formandos, não apenas uma nota de tristeza, porém, uma canção inteira. 

Uma das melhores coisas que a faculdade proporciona, além do conhecimento, são as amizades que se adquire durante o período de estudos. Algumas delas são muito marcantes e acompanham o universitário pelo resto de suas vidas. Mesmo que a vida os leve por caminhos diferentes e os amigos dos tempos da “facul” não mais se vejam, sempre ficará na mente e no coração as boas lembranças das pesquisas feitas juntos, dos grupos de estudos, da conversa sincera sobre as expectativas futuras, do papo sobre trivialidades.

Na missa de formatura da turma do curso de Direito, da Pontifícia Universidade de Campinas, faltava o sorriso franco de Lorenzo Andrade de Moraes, de 23 anos. Lourenzo, que iria se formar junto com a turma, foi encontrado morto em um canavial, na cidade de Engenheiro Coelho, na noite de terça-feira (11) de março. O estudante morava na cidade de Mogi-Mirim e foi assassinado às vésperas de ver realizado o sonho da formatura. Por ocasião da morte do jovem, o Centro Acadêmico do curso de Direito da PUC-Campinas, divulgou a seguinte nota:

"Em nome de todos os alunos da Faculdade de Direito da PUC Campinas, o C.A XVI de Abril lamenta a morte de nosso amigo Lorenzo Moraes. Um grande aluno que depositou sabedoria e compaixão em tudo que tocou. Grande homem, farto de honestidade e lealdade.

Com as mãos trêmulas, digitamos esta singela lembrança a este eterno amigo.

Vá em paz, Dr. Lorenzo"

***

A morte do jovem Lorenzo me faz pensar nos infindáveis mistérios da vida. Lourenzo e sua turma de universidade trilharam o mesmo caminho, compartilharam dos mesmos sonhos e das mesmas dificuldades, enquanto universitários, mas quis o destino que eles, em datas muito próximas, fizessem diferentes rituais de passagem.

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