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Faroeste em Brasília
Posted by Cottidianos
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11:55
Terça-feira,
28 de fevereiro
O texto
abaixo é inspirado na música Faroeste Caboclo, de autoria de Renato Russo,
líder da banda Legião Urbana, da qual era vocalista. A canção faz parte do álbum,
Que País é Este, de 1987.
***
Eram sete horas da noite quando Santo
Cristo sentou-se no velho sofá da sala do pequeno apartamento onde morava, em
Taguatinga, Distrito Federal. Trouxera
consigo da cozinha, um sanduiche e um refrigerante que lhe valeriam como
jantar. Pegou o controle remoto que já estava jogado em cima do sofá, e ligou à
velha TV. Estava cansado de um exaustivo dia de trabalho.
Tinha ele cerca de vinte e seis anos.
Estava em Brasília há cerca de três meses. Sempre se perguntara por que a
cidade era o centro do poder, e esse poder não chegava ao povo. Pelo menos, nas
raras vezes em que tinha passado pelos hospitais da Capital Federal, não
encontrara nada de diferente dos demais hospitais do país: estruturas em
condições precárias, falta de medicamentos, e uma demora imensa entre marcar e
realizar um exame médico. Já soubera de pessoas que morreram na porta do
hospital à espera de atendimento.
Chegara à Brasília pouco antes do Natal.
Foi um dos piores natais que ele passou. Recém-chegado na cidade, sem conhecer
ninguém, na noite de natal a solidão foi sua companheira, e sua ceia,
refrigerante e cachorro quente simples, que comprara numa banca da esquina,
próxima do prédio onde alugara um barato apartamento, em Taguatinga, região
administrativa do Distrito Federal.
Decidido a arranjar logo um emprego,
percorreu a cidade de norte a sul, e de leste a oeste. Esperava que, com tanta
gente viajando, ou querendo se divertir houvesse vagas sobrando para quem,
realmente, queria trabalhar.
Estava certo. Depois do Natal viu um anúncio
de carpinteiro numa modesta carpintaria. Não teve dúvidas. Entrou. O dono, um
homem franzino e mal humorado, perguntou se ele tinha experiência na área. Foi
sincero: não tinha. O homem então lhe disse que o aceitava como aprendiz,
porém, com salário menor do que o anunciado no mural de anúncios na frente da
loja.
Santo Cristo não pensou duas vezes. Era
aquele emprego, ou nenhum. Já fizera muita besteira na vida, muita coisa
errada. Agora queria ver se se endireitava. Criava jeito de gente, como dizia
sua querida avó, a quem, carinhosamente, chamava de Belinha.
Seus pensamentos, após essas divagações
voltaram ao noticiário televisivo. O ministro da Fazenda anunciava um novo
plano para conter a inflação. Dizia ele que a inflação poderia subir nos
próximos meses, mas que a população podia ficar tranquila que tudo iria
melhorar.
O jovem irritou-se, por uns momentos,
com a fala do ministro. Como pode um homem desses vir a público pedir calma a
população? O povo quer mesmo é solução para o problema. Afinal, não é para
alimentar um bando de políticos corruptos que se paga tanto imposto, mas para se
ter uma vida decente. “O ministro fala com essa calma toda por que, além do
exorbitante salário que recebe, ainda recebe também dezenas de vantagens que lhe
dão um respaldo para o bolso”.
Ele mesmo, por exemplo, trabalhava na
carpintaria até a exaustão, mas o dinheiro mal dava pra se alimentar. O que ele
queria mesmo era, um dia, encontrar com o presidente, e pedir a ele pra ajudar
esse povo tão sofrido. Afinal, esse fora o primeiro pensamento que o animara a
vir pra Brasília: poder encontrar com o presidente numa dessas idas e vindas, e
lhe pedir para mudar o Brasil, fazer do país um lugar onde se pudesse viver
decentemente.
João de Santo Cristo, até se esforçava
para levar uma vida longe do vício. Mas os prazeres da carne, todas as
sextas-feiras, o levavam para os cabarés da zona da cidade, e lá, entre as
mulheres que ofereciam prazeres pagos, gastava todo o dinheiro que ganhava na
semana como rapaz trabalhador.
Esses lugares eram frequentados por
gente que de santa não tinha nada. Numa dessas noites, João conheceu, por
acaso, um neto bastardo de seu bisavô. Pablo era um peruano bem sucedido no tráfico
drogas e entorpecentes. Por ter dupla cidadania ficava bem fácil para ele
entrar com a droga no Brasil. Além do que a fiscalização nos aeroportos
brasileiros deixava muito a desejar, se viesse de avião. Se viesse de carro,
então a vasta fronteira brasileira, aliada a pouca fiscalização, facilitava-lhe
me muito a vida. Ainda havia um facilitador misturado a tudo isso que era a
propina paga a policiais corruptos. Sempre havia um. Bastava descobrir qual era
o de princípios mais fracos, e disposto a aumentar o patrimônio com dinheiro
fácil.
Apesar de frequentar esses antros, Santo
Cristo havia levado, até aquele momento, em Brasília, uma vida honesta e de
rapaz trabalhador. Mas a vida dura que levava às vezes o balançava, e o tentava
a mudar o lado da balança em que se encontrava.
Ainda mais quando via os “bons” exemplos
que vinham dos políticos que formavam o Congresso Nacional, e até no Palácio do
Planalto. Era uma gente sem escrúpulos que não estava nem aí para a nação. Pensavam
apenas nos próprios interesses, nas próprias famílias e amigos, e mais que
tudo, no próprio bolso.
Nesses poucos meses passados em
Brasília, havia conhecido muita gente baixo nível. De meretrizes baratas a
prostitutas de luxo. Essas últimas ele não podia pagar, mas trocava prosa com
elas. Foi por elas que soube que muitos políticos que durante o dia usavam
máscara de bom moço, e empunhavam a bandeira da defesa da família e dos valores
tradicionais, à noite se transformavam por completo e viravam devassos nos
braços delas e, nos braços delas, torravam parte do rico dinheiro recebido de
propinas, ou desviados dos cofres públicos.
Santo Cristo havia terminado de comer
seu sanduiche com refrigerante, e ainda via o noticiário que mostrava mais uma
operação policial da Lava Jato, que prendera um importante político, acusado de
formação de quadrilha, e corrupção ativa e passiva. O deputado jurava que não
tinha contas no exterior, mas quem acreditava nisso? Apenas ele mesmo, talvez.
Foi quando uma pergunta surgiu em sua
mente. Valia a pena ser honesto? Valia a pena trabalhar tanto, pagar tantos
impostos para sustentar uma classe política hipócrita e desonesta?
Pensou na proposta que Pablo — o neto
bastardo de seu bisavô, que conhecera na zona — lhe havia feito de enveredar
pelos sedutores e perigosos caminhos do tráfico, e encontrar o caminho das
pedras preciosas.
Sabia que aquele era um caminho
perigoso, e que, talvez, não tivesse volta. Nesse momento, as lembranças da
infância lhe vieram fortes. O preconceito que sofrera na fazenda onde morava
por ser negro, e pobre o tornou uma criança arredia e rebelde. Pensava em ser
bandido, desses que ele via na TV. Achava-os poderosos com aquelas armas
potentes na mão. A rebeldia tornou-se revolta quando, durante uma abordagem
policial, seu pai, que era negro, e voltava do trabalho, à noite, foi morto
pelo fuzil de um policial. O policial o havia confundido com um bandido que
havia assaltado um supermercado algumas quadras para trás.
Tornou-se uma criança terrível. Dava trabalho
em casa, na escola, e na igreja. Cresceu e tornou-se o Don Juan do lugar. Pegava
todas as garotas das redondezas. Por mais que pensasse, não entendia a
engrenagem do preconceito por causa de sua classe, de sua pele, e de sua cor,
que lhe feria o coração. Aquele mundo passou a ser pequeno para ele. Os sonhos
de cidade grande começaram a rondar sua mente. Comprou uma passagem, e mudou-se
da pequena cidadezinha na Bahia, onde morava, e resolveu mudar-se para a
capital, Salvador.
A vida boemia de Salvador lhe atraiu de
pronto, e passou a frequentá-la, quase que diariamente. Numa dessas noite, em
um dos barzinho nos arredores do Pelourinho, entre um gole de cachaça e outro,
trocou prosa com um boiadeiro. Conversa vai, conversa vem, descobriu que o boiadeiro
vivia um drama familiar. Estava de passagem comprada pra Brasília, mas sua
filha, que há tempos não lhe falava, lhe telefonou e lhe disse que precisava,
mais do que nunca, da sua presença e de sua companhia. Estava atravessando uma
fase difícil da qual o boiadeiro não quis dar mais detalhes.
O boiadeiro lhe disse que Brasília era o
melhor do mundo, e etc, e tal. João de Santo Cristo ficou tentado. O
companheiro de noitada lhe ofereceu a passagem que havia comprado pela metade
do preço. João não pensou duas vezes. Dez horas depois, entrava num ônibus rumo
ao Planalto Central. Ainda lembrava-se de seu deslumbramento com a cidade
quando seus olhos a viram pela primeira vez. Era Natal. Pinheiros, luzes, e
papais noeis, piscavam reluzentes nas fachadas das lojas e prédios públicos e
particulares.
Emergiu das lembranças com a decisão
tomada. Trocou de roupa. Desligou a TV. Apagou as luzes. Trancou o apartamento.
E saiu pela noite à procura de Pablo. Enquanto andava pelas ruas da cidade, a
tentação do dinheiro fácil cegava-lhe os olhos.
Pablo lhe deu todas as dicas. Primeiro ele
tinha que começar com negócio interno. Nada de atravessar fronteiras. O traficante
lhe indicou locais seguros de plantio, e modos de fazê-lo de modo a obter uma
boa plantação. Logo os playboys da cidade souberam que havia droga bem cuidada
e de boa qualidade circulando na área.
Enquanto João lhes abastecia com
produtos de qualidade, seus bolsos se enchiam de níquel maldito e valioso. Com sua
influencia aumentando, os outros traficantes da área se sentiram intimidados e
perdendo terreno, e se afastaram dali. Santo Cristo sentiu-se, finalmente, o
dono do pedaço.
Seu circulo de amizades aumentou. Passou
a frequentar a casa de uns amigos endinheirados na Asa Norte. A amizade com os
playboys de lá não lhe foi positiva no sentido de que, sob a influencia deles,
Santo Cristo mergulhou ainda mais no mundo do crime. Envolvido com gente da
pesada, João entrou no esquema de roubos a banco.
Certo dia, durante um assalto, os
policiais estavam de prontidão. Houve troca de tiros. Por pouco não morreu, mas
foi preso pela polícia. Seu mundo caiu quando ele pisou no inferno da prisão
pela primeira vez. Sem curso superior que lhe permitiria cela especial, foi
jogado numa cela comum, superlotada, como em todos os presídios brasileiros. Descobriu
que a lei da selva da prisão era cruel e fria. Violência. Estupro de seu corpo
e de suas ideias. Se não concordasse com as leis brutais do presídio, morria. Então
era melhor aguentar tudo calado. Um dia ele conseguiria sair dali, e recomeçar
a vida... do crime. Enquanto isso, uma revolta interna e silenciosa, tomava
conta de sua alma. A prisão era para ele uma universidade do crime.
De fato, depois que saiu de lá, Santo
Cristo, estava pior do que quando havia entrado. Perdera o medo. Perdera a
vergonha. Perdera o pudor. Não tinha medo nem de polícia, nem general, nem de
traficante, nem de playboy. Até para o tráfico internacional de drogas ele
enveredou.
Belo dia o amor bateu à sua porta. Foi num
churrasco na chácara de uns amigos. Eles haviam convidado a sobrinha, Maria
Lúcia. Ela não era do mundo do crime. Nem sabia que os tios estavam envolvidos
nesse negócio perigoso. O jeito meigo e espontâneo, e ao mesmo tempo
determinado, de Maria Lúcia chamou-lhe a atenção. João também deve ter chamado
a atenção da moça, pois quando seus olhos se encontravam desaguava num mar de
carinho.
Apaixonaram-se. Passaram a morar juntos.
Promessas de amor rolaram fartas entre os dois. João lhe falou de seu passado
criminoso. Maria Lúcia o perdoou. E carpinteiro ele voltou a ser.
Passou o tempo, e, certo dia, apareceu
um homem de alta classe, bem vestido. Trazia nas mãos um envelope recheado de
dinheiro. Era tanto dinheiro que dava pra mudar a vida dele, e a de Maria Lúcia
pra sempre.
O homem se dizia enviado por um Senador
— não disse qual — que deseja fazer um atentado contra um funcionário público
que daria um depoimento contra ele em um processo importante. O depoimento da
testemunha poderia arruinar a vida política e pessoal do Senador. E João era a
pessoa indicada para o crime. Era pegar ou largar. Fariam as coisas bem feitas,
e ninguém jamais saberia quem o foi o autor, ou quem foi o mandante.
Santo Cristo sentiu-se tentado por uns
instantes, mas pensou em Maria Lúcia. E recusou a proposta do distinto homem. Este
ficou irritado pela recusa. E ao sair, disse em tom ameaçador, que Santo Cristo
havia perdido a vida dele.
As últimas palavras do incomodo visitante
pareceram ter soado como maldição, pois dali para a frente, a vida de João
andou para trás. Entregou-se a bebedeira. Foi demitido do trabalho que havia
retomado na carpintaria. Novamente procurou Pablo, e ao mundo do crime
retornou. O contrabando trazido da Bolívia era todo revendido em Planaltina.
Dessa vez, porém, ele já não era o único
dono do pedaço. Jeremias, um traficante renomado, soube dos planos de João em
se reestabelecer na área, e decidiu complicar a vida dele. Organizou uma festa
regada a drogas da pesada, chamou João, e, anonimamente, avisou a polícia. Quando
a polícia chegou ao local já estava tudo armado para apontarem João como
organizador do evento. E assim aconteceu. E Santo Cristo foi para o inferno da
prisão pela segunda vez.
Ao sair de lá. Tudo havia mudado. Jeremias
havia jogado seu charme em cima de Maria Lúcia, e com ela comandava o tráfico
na área. Com Maria Lúcia Jeremias teve um filho.
Quando soube disto pelos companheiros de
crime, Santo Cristo sentiu seu mundo desabar. Para ele a vida não tinha mais
sentido. Iria embora dela, mas não iria sozinho.
Pegou uma Winchester 22 que seu primo
Pablo havia lhe dado, e rumou para a casa onde morava o casal , seu desafeto. Pouparia
a criança. Esperou, pacientemente, dentro de um carro do outro lado da rua,
quando uma tia do menino a levou para um passeio no shopping. Já havia estudado
antes toda a rotina da família. Quando viu que o caminho estava livre saiu do
carro e sorrateiramente, pulou o muro da casa onde morava o casal. Era ao
anoitecer e as sombras da noite invadiam o ambiente.
No dia seguinte, as manchetes de jornal,
anunciavam o crime passional que havia ocorrido em Planaltina: o traficante
João de Santo Cristo, havia atirado no traficante Jeremias, e em Maria Lúcia,
depois havia cometido suicídio. Muita gente do meio político leu a notícia e
ficou aliviada, pois Santo Cristo sabia de muitas coisas que se passavam nos
bastidores da política brasiliense. Cadáveres não falam.
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