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Samba do crioulo doido
Posted by Cottidianos
on
23:05
Quinta-feira, 02 de março
Antes de olhar para o cenário político e
sua tenebrosa trama marcada por corrupção, e os tétricos personagens nela
envolvidos, lancemos um olhar sobre o samba enredo da campeã do grupo especial
das escolas de samba do carnaval paulista.
Antes de chegar a São Paulo, demos um
pulo no Rio. Rio de Janeiro. A bruxa esteve solta na Avenida Marques de
Sapucaí, e, por pouco, não aconteceu uma tragédia. O desfile das escolas de
samba do grupo especial do Rio foi marcado pelos problemas envolvendo carros
alegóricos.
Os problemas afetaram as escolas Paraíso
do Tuiuti, União da Ilha, Unidos da Tijuca, Mocidade Independente de Padre
Miguel. Os acidentes ocorreram tanto no domingo, quanto na segunda-feira de
carnaval.
Um carro alegórico da escola Paraíso do
Tuituti perdeu o controle e prensou algumas pessoas na grade que separa a pista
das arquibancadas. Algumas delas ficaram presas nas ferragens e os bombeiros
tiveram que intervir para tirá-las do apuro. Vinte pessoas ficaram feridas
nesse acidente.
Outro acidente impactante ocorreu em um
dos carros da Unidos da Tijuca. A parte de cima de um dos carros afundou,
derrubando as pessoas que estava em cima e atingindo as que estavam logo abaixo
no mesmo carro. 12 pessoas ficaram feridas, sendo duas em estado grave.
No Rio, a escola vencedora do carnaval
deste ano foi a Portela.
É sempre assim: depois do leite
derramado corre-se atrás do prejuízo. No caso, corre-se agora em busca de
corrigir os erros para o próximo ano.
Vamos a São Paulo. Se lá alguma bruxa
esteve solta, era bruxa do bem e da alegria, pois em Sampa não houve maiores
incidentes durante os desfiles das escolas de samba. Em São Paulo, a vitoriosa
foi a escola de samba Acadêmicos do Tatuapé.
A Acadêmicos do Tatuapé foi a quarta
escola de samba a entrar na avenida, na madrugada de sábado (25). Seus 3 mil e
200 componentes, divididos em 5 alas recheadas de variadas cores e muito brilho,
exibiam um sorriso de orelha a orelha, e muito samba no pé.
Entusiasmada, e disposta a levar o título,
a escola entrou na avenida embalada pelo enredo, “Mãe-África conta a sua história: Do Berço Sagrado da Humanidade à Terra
Abençoada do Grande Zimbawe!”
No enredo e nas fantasias, um passeio
pelos reinos da África, sua cultura, e sua religião. Afinada com o empolgante
som da bateria, os componentes, com garra, soltavam a voz, entoando o samba
enredo, cuja letra diz:
Raiou... no horizonte
meu destino
A vida nesse solo vi
brotar
Sou eu .... a negra mãe
da humanidade
Em meu ventre a
verdade... humildade e amor
A força de um filho
guerreiro
Herança de luta e dor
Abraça a liberdade... a
igualdade em comunhão
A realeza estampada na
pele
Coroada num só coração
Bate o tambor... deixa
girar
Pra exaltar meus orixás
Um canto livre de amor
Na fé... na religião
Somos todos irmãos
Vejo meus filhos
trilhando caminhos
Com a proteção de
obatalá
Em poesia... brilha a
cultura no olhar
Na ginga o batuque
espalha magia
Meu samba hoje vai
exaltar
Taí o menino da terra
do ouro... um vencedor
Levo a mensagem...
lição para o mundo
Tolerância... paz e
amor
É de arerê... ilê,
ijexá
Essa kizomba de um povo
feliz
Eu sou a áfrica...
derramo meu axé
Canta Tatuapé
O problema com a embriaguez do vinho da
emoção é que nesse porre é comum as pessoas chamarem até urubu de meu louro. Canta-se
a letras dos sambas enredos sob os auspícios da alegria, e nem se percebe que a
letra do que está sendo cantado não corresponde a realidade vivida. Mas, às
vezes, nem todos estão embriagados, algumas mentes alertas estão com seus
radares ligados, prestando atenção se o que está sendo cantado reflete, de
fato, a realidade.
E esse olhar, ou melhor, ouvido a letra
do samba entoado pela campeã, coube ao jornalista, Leandro Narloch.
Ao analisar o título do enredo da samba
da escola, Leandro, pensou: “Peraí, tem alguma coisa errada aqui. Eles chamam o
Zimbábue, país africano, de “terra abençoada?”
E, realmente, se nos debruçarmos sobre
dados estatísticos de organismos internacionais, veremos que de terra abençoada
o Zimbábue não tem nada. Como pode ser abençoado um país, cuja população vive
abaixo da linha da pobreza, que enfrenta graves problemas econômicos e sociais,
subnutrição, e que, mesmo sem recursos, ainda tem que conviver com a praga do
HIV?
Baseado nestas reflexões, Leandro
Narloch escreveu o artigo intitulado, Tatuapé enlouqueceu ao dizer que Zimbábue é 'terra abençoada'. O artigo foi publicado na Folha de São Paulo,
na quarta-feira (01).
Excelente reflexão. Apenas discordo do
jornalista no ponto em que ele releva a importância da herança que a África nos
legou através dos negros aprisionados lá e trazidos para cá em condições sub-humanas.
É inegável a contribuição que os negros africanos trouxeram para apimentar a
nossa cultura, nossa música, e nosso jeito de ser.
Abaixo, este blog, compartilha, com
autorização do jornalista, Leandro Narloch, o artigo publicado na Folha. Leandro
é jornalista, mestre em filosofia, e autor do “Guia Politicamente Incorreto da
História do Brasil”, entre outros. Escreve para a Folha às quarta-feiras.
Ademais,
e apesar das críticas, parabéns a Acadêmicos do Tatuapé, pela vitória. Vitória
essa que é fruto de um ano inteiro de muito trabalho.
***
Tatuapé enlouqueceu ao dizer que
Zimbábue é 'terra abençoada'
Leandro Narloch
Se existe um lugar triste nesse mundo,
um país amaldiçoado a só produzir notícias de atentados à liberdade e à
igualdade, esse país é o Zimbábue, que a Acadêmicos do Tatuapé, campeã do
carnaval de São Paulo, homenageou e chamou de "terra abençoada".
Eu sei, não dá para levar sambas-enredo
a sério. A expressão "samba do crioulo doido" define há muito tempo a
mistureba sem sentido das músicas dos desfiles. Escolas criam homenagens a
qualquer um que oferecer um bom cascalho —pelo patrocínio, já houve sambas-enredo
em louvor à Guiné Equatorial, ao iogurte, a Simón Bolívar, ao "cacau é
show" e até mesmo, pasme o leitor, a Itanhaém.
Ainda assim, não consigo deixar de me
impressionar com a obsessão dos carnavalescos com a África. Eles passam o ano
todo assistindo série americana na TV. Quando podem viajar para fora do Brasil
nas férias, correm para Nova York e para a torre Eiffel. Mal sabem apontar o
Zimbábue no mapa. Mas, na hora de criar o samba-enredo, só dá "mãe
África".
"A descoberta do clarinete por
Mozart foi uma contribuição maior do que toda África nos deu até hoje",
dizia Paulo Francis. Podemos ir mais longe em se tratando de um país
específico. A última temporada de "Malhação" foi uma contribuição
maior que todo o Zimbábue nos deu até hoje.
O Zimbábue é um dos poucos países do
mundo onde a expectativa de vida caiu nas últimas décadas. Passou de 61 anos em
1987 para 42 em 2003 - o índice voltou a subir e, em 2012, chegou a 58 anos,
segundo o Banco Mundial. Milhares de zimbabuanos (dei um Google para descobrir
o gentílico do Zimbábue) morrem todos os anos de Aids e malnutrição.
Em 2009, o governo desistiu de ter uma
moeda nacional e deixou os moradores adotarem o dólar. É que a inflação havia
ultrapassado 230 milhões por cento. Nos anos 1990, depois de uma reforma
agrária que confiscou a terra de colonos brancos e asiáticos, a produção
agrícola despencou. "Terra abençoada", sério mesmo, Acadêmicos do
Tatuapé?
O samba-enredo da escola fala em
"lição para o mundo, tolerância, paz e amor" vinda do Zimbábue ou da
África em geral. Mas peraí: de 55 países africanos, 34 proíbem a
homossexualidade, alguns com pena de morte. O socialista Robert Mugabe, líder
do Zimbábue há 36 anos, diz que os gays são repugnantes e "degradam a
dignidade humana". Também persegue opositores e frauda eleições.
Não que a África não mereça atenção e
grandes obras. Os livros de Mia Couto ou V.S. Naipaul encantam qualquer um ao
contar a história recente da África e o mal que revoluções disseminaram por
ali. Mas parece que o samba-enredo da Acadêmicos de Tatuapé fala de outro país,
outro continente. "Alegria", "tolerância" e "paz"
não combinam muito bem com Zimbábue.
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