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Conversando com o samba
Posted by Cottidianos
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13:56
Terça-feira,
17 de fevereiro
Nessa gostosa terça-feira, feriado
oficial de carnaval, dedico a vocês esse leve, alegre, descontraído e suave
texto, como também assim o é a alma do samba.
***
Há
como ficar indiferente ao toque de um pandeiro, de um tamborim, de um
reco-reco? Há como ficar indiferente ao maravilhoso som do violão, de um
cavaquinho ou de um bandolim? Não, não como ficar indiferente ao som desses
instrumentos. O coração dispara no mesmo ritmo de um surdo ou de um tan-tan e a
adrenalina corre solta pela corrente sanguínea, como que a incendiá-la. Inconscientemente,
os pés começam a se mover, o corpo a se balançar e os braços a se agitarem e,
em segundos, todo a massa humana esta a se agitar em um movimento frenético. É algo
mágico, difícil de explicar com simples palavras.
É bem
inexplicável que, um ritmo que nasceu sob o signo da dor e da opressão,
expresse tanta alegria e entusiasmo. Sem que se tenha pensado nisso, planejado
isso, o samba dá um importante recado a cada um de nós: O de que a tristeza
jamais deve superar a alegria, de que dor e cansaço jamais deverem ser maiores
que o poder do entusiasmo e do amor pela vida. Enfim, o samba com seu ritmo
acelerado, nos estar a dizer que, mesmo que o céu fique carregado de nuvens, e
sobre nossas cabeças desabe uma infernal tempestade, mesmo assim o sol da alegria
estará sempre brilhando sobre as constelações de nossos sonhos e, um dia, em
momento oportuno, ele iluminará nosso caminho com beleza e intensidade.
Foi
nas senzalas de um Brasil colônia que nasceu essa batida enigmática. Os negros
trazidos em condições degradantes em navios negreiros, da África para o Brasil,
eram aqui explorados ao máximo em sua capacidade de trabalho. Com o corpo e
alma em chagas, batucavam nas senzalas em louvor aos seus orixás, em um canto,
às vezes de lamento, às vezes de alegria. Talvez por isso, o samba tenha força
de oração. Tendo nascido no Recôncavo Baiano, foi levado ao Rio de Janeiro
pelos escravos que eram comprados na Bahia e levados para o Rio, ou por aqueles
que, simplesmente, acompanhavam seus senhores em mudança, de um estado para outro...
E, apesar de ter nascido baiano, fez do Rio de Janeiro, o seu berço esplendido.
Ali,
nas ruas da capital carioca, o toque e a dança, praticados pelos escravos,
gostosa e harmoniosamente, misturaram-se a ritmos de outras terras, com, por
exemplo, os ritmos de terras portuguesas e eles aliaram-se, formando o samba,
ritmo genuinamente brasileiro. Por ter nascido em berço negro, o samba foi
injustamente criminalizado e visto com preconceito. Porém, como rio que segue
livre para o mar, o samba seguiu pela historia, abrindo seu caminho em direção à
fama e ao sucesso e, como diz o genial compositor, Cartola, na música, Tempos
Idos, “vitorioso, ele partiu para o estrangeiro”.
Entretanto,
apesar de ser um ritmo mágico que tem força de oração, o samba deve grande
parte de seu êxito aos profetas do samba, homens inspirados que, com o brilho
de sua inspiração, conseguiram fazer de uma folha de papel em branco, um jardim recheado de
poesia, de crítica social, cura de mágoas de amor, louvação ao amor e preces e
súplicas aos ancestrais divindades africanas.
Falo
dos compositores do samba, que tão bem souberam cantar o Brasil, suas riquezas,
costumes, mazelas e maravilhas, através de suas letras. Gente que deveria ser
sempre lembrada, e na maioria das vezes não é. Foi graças ao talento de gente
como Candeia, Ismael Silva, Wilson
Batista, Martinho da Vila, Mário Lago e tantos outros que o samba conquistou o
status de estrela no céu da cultura brasileira.
O
texto abaixo, mais que um conversa, é uma brincadeira séria. Nele, faço do
samba um ente real e com ele converso sobre sua própria história, desejos e
sonhos. As respostas dadas pelo samba são músicas inteiras — como é caso
de Pierrô Apaixonado, de Noel Rosa; Vila Esperança, de Adoniran Barbosa; Conto
de Areia, de Romilo e Toninho e Vila Esperança, de Adoniran Barbosa — ou
trechos de músicas compostas por compositores, representam verdadeiras estrelas de
primeira grandeza, do céu da música popular brasileira. Compositores esses, que com a força de sua criatividade
e inspiração, construíram verdadeiras joias que adornam a coroa brilhante do
samba.
Não deu para incluir
todos, pois se assim o fizesse, teria que fazer dezenas de postagens, por isso,
trouxe apenas alguns representantes desse mundo maravilhoso chamado, samba.
No
texto, estão as seguintes obras e compositores:
Zé
Keti
- A voz do morro
Noel
Rosa
- Feitio de oração, Peirrô apaixonado e
Não tem tradução
Cartola – Tempos Idos
Adoniran
Barbosa
- Vila Esperança e Samba do Arnesto
Conto
de Areia
– Romildo Bastos e Toninho Nascimento
Paulinho
da Viola
- Eu canto samba e Argumento
Marcha
da Quarta-feira de Cinzas – Vinícius de Moares e Carlos Lyra
Candeia - Preciso me
encontrar
Não
deixe o samba morrer
– Edson Conceição e Aloisio Silva
***
Conversando
com o samba
Fale-nos um pouco sobre você. Quem é, de onde veio?
Como se define em sua essência?
Eu
sou o samba
A
voz do morro sou eu mesmo sim senhor
Quero
mostrar ao mundo que tenho valor
Eu
sou o rei dos terreiros
Eu
sou o samba
Sou
natural daqui do Rio de Janeiro
Sou
eu quem levo a alegria
Para
milhões
De
corações brasileiros
Você tem a característica de levar alegria para
todas as pessoas, sejam elas pretas, brancas, ricas ou pobres. Na verdade,
minha pergunta é: Onde se aprende a arte do samba? O que é sambar?
Batuque
é um privilégio
Ninguém
aprende samba no colégio
Sambar
é chorar de alegria
É
sorrir de nostalgia
Dentro
da melodia.
Você nasceu no morro. Hoje, você se definiria com
sendo do morro ou da cidade?
O
samba, na realidade, não vem do morro
Nem
lá da cidade
E
quem suportar uma paixão
Sentirá
que o samba, então,
Nasce
do coração.
Durante o
decorrer da historio, principalmente, logo após o seu nascimento, você foi muito
perseguido e marginalizado. Depois, cresceu e deu a volta por cima, sendo,
inclusive, reconhecido internacionalmente. Poderia resumir essa trajetória para
nós?
Os
tempos idos
Nunca
esquecidos
Trazem
saudades ao recordar
É
com tristeza que eu relembro
Coisas
remotas que não vêm mais.
Uma
escola na Praça Onze
Testemunha
ocular
E
perto dela uma balança
Onde
os malandros iam sambar
Depois,
aos poucos, o nosso samba
Sem
sentirmos se aprimorou.
Pelos
salões da sociedade
Sem
cerimônia ele entrou
Já
não pertence mais à Praça,
Já
não é mais samba de terreiro,
Vitorioso
ele partiu para o estrangeiro.
E
muito bem representado
Por
inspiração de geniais artistas
O
nosso samba, humilde samba,
Foi
de conquistas em conquistas,
Conseguiu
penetrar no Municipal,
Depois
de percorrer todo o universo
Com
a mesma roupagem que saiu daqui,
Exibiu-se
para a duquesa de Kent no Itamaraty
Você já presenciou muitos fatos pitorescos no
carnaval. Poderia nos contar uma destes fatos?
Um
pierrô apaixonado
Que
vivia só cantando
Por
causa de uma colombina
Acabou
chorando, acabou chorando
A
colombina entrou num butiquim
Bebeu,
bebeu, saiu assim, assim
Dizendo:
pierrô cacete
Vai
tomar sorvete com o arlequim
Um
grande amor tem sempre um triste fim
Com
o pierrô aconteceu assim
Levando
esse grande chute
Foi
tomar vermute com amendoim.
É possível traduzir o samba para outro idioma?
Essa
gente hoje em dia que tem a mania da exibição
Não
entende que o samba não tem tradução no idioma francês
Tudo
aquilo que o malandro pronuncia
Com
voz macia é brasileiro, já passou de português.
Na Vila Esperança, você conheceu seu primeiro amor?
No final das contas, desse amor só restou uma
lembrança, poderia nos contar essa história?
Vila
Esperança, foi lá que eu passei
O
meu primeiro carnaval
Vila
Esperança, foi lá que eu conheci
Maria
Rosa, meu primeiro amor
Como
fui feliz, naquele fevereiro
Pois
tudo para mim era primeiro
Primeira
rosa, primeira esperança
Primeiro
carnaval, primeiro amor criança
Numa
volta no salão ela me olhou
Eu
envolvi seu corpo em serpentina
E
tive a alegria que tem todo Pierrô
Ao
ver que descobriu sua Colombina
O
carnaval passou, levou a minha rosa
Levou
minha esperança, levou o amor criança
Levou
minha Maria, levou minha alegria
Levou
a fantasia, só deixou uma lembrança.
Já que estamos falando em recordações, uma delas
lembra uma roda de samba de que não aconteceu e isso lhe deixou muito chateado.
Como foi isso?
O
Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás
Nós
fumos, não encontremos ninguém
Nós
voltermos com uma baita de uma reiva
Da
outra vez, nós num vai mais
No
outro dia encontremo com o Arnesto
Que
pediu desculpas, mas nós não aceitemos
Isso
não se faz, Arnesto, nós não se importa
Mas
você devia ter ponhado um recado na porta
Um
recado assim ói: "Ói, turma, num deu pra esperá
Ah,
duvido que isso num faz mar, num tem importância
Assinado
em cruz porque não sei escrever"
Arnesto
Quem samba na avenida é passista. E quem samba na
beira do mar, o que é?
O
mar serenou quando ela pisou na areia
Quem
samba na beira do mar é sereia
O
pescador não tem medo
É
segredo se volta ou se fica no fundo do mar
Ao
ver a morena bonita sambando
Se
explica que não vai pescar
Deixa
o mar serenar
A
lua brilhava vaidosa
De
si orgulhosa e prosa com que deus lhe deu
Ao
ver a morena sambando
Foi
se acabrunhando então adormeceu o sol apareceu
A
estrela que estava escondida
Sentiu-se
atraída depois então apareceu
Mas
ficou tão enternecida
Indagou
a si mesma a estrela afinal será ela ou sou eu
Por que você decidiu cantar o samba? Existe algum
motivo especial?
Eu
canto samba
Por
que só assim eu me sinto contente
Eu
vou ao samba
Porque
longe dele eu não posso viver
Com
ele eu tenho de fato uma velha intimidade
Se
fico sozinho ele vem me socorrer
Há
muito tempo eu escuto esse papo furado
Dizendo
que o samba acabou
Só
se foi quando o dia clareou.
Há uma corrente na música popular brasileira, que
defende que o samba tem que se modernizar. Eu também acho que não se deve ficar
eternamente preso ao passado. E você qual a sua opinião?
Tá
legal
Tá
legal, eu aceito o argumento
Mas
não me altere o samba tanto assim
Olha
que a rapaziada está sentindo a falta
De
um cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim
Sem
preconceito ou mania de passado
Sem
querer ficar do lado de quem não quer navegar
Faça
como um velho marinheiro
Que
durante o nevoeiro
Leva
o barco devagar
Chegou a quarta-feira de cinzas. Acabou o carnaval. E agora?
Acabou
nosso carnaval
Ninguém
ouve cantar canções
Ninguém
passa mais
Brincando
feliz
E
nos corações
Saudades
e cinzas
Foi
o que restou
Pelas
ruas o que se vê
É
uma gente que nem se vê
Que
nem se sorri
Se
beija e se abraça
E
sai caminhando
Dançando
e cantando
Cantigas
de amor
E
no entanto é preciso cantar
Mais
que nunca é preciso cantar
É
preciso cantar e alegrar a cidade
O que você
pretende fazer depois do carnaval?
Deixe-me
ir
Preciso
andar
Vou
por aí a procurar
Rir
pra não chorar
Deixe-me
ir
Preciso
andar
Vou
por aí a procurar
Rir
pra não chorar
Quero
assistir ao sol nascer
Ver
as águas dos rios correr
Ouvir
os pássaros cantar
Eu
quero nascer
Quero
viver
Se você pudesse fazer um apelo ao Brasil, pela sua
própria continuidade, qual seria o seu pedido?
Não
deixe o samba morrer
Não
deixe o samba acabar
O
morro foi feito de samba
De
Samba, prá gente sambar.
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