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A marcha do silêncio e uma morte enigmática
Posted by Cottidianos
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Sexta-feira, 20 de janeiro
“Mistérios da meia-noite
Que voam longe
Que você nunca
Não sabe nunca
Se vão se ficam
Quem vai quem foi”
(Mistérios da Meia Noite – Zé Ramalho)
Olho
para Argentina por sobre as notícias que me chegam através dos meios de
comunicação e tudo que acontece por lá me parece tão surreal, misterioso e
tenebroso, que tenho a impressão de que estou diante de um muito bem elaborado
roteiro de filme hollywoodiano de suspense. Afinal, o que teria realmente
acontecido no apartamento do promotor federal, Alberto Nisman, entre os dias 18
e 19 de janeiro? O promotor foi encontrado morto no banheiro de seu
apartamento, na madrugada de domingo para segunda do dia 19, em Buenos Aires,
no Bairro de Puerto Madero, area nobre da capital argentina, com um tiro na
cabeça. Segunda a polícia, o tiro fora disparado ainda no domingo.Antes de sua
morte, Nisman tornou públicas as ameaças de morte que vinham sofrendo. O
promotor estava sob intensa vigilância de dez agentes policiais que faziam sua
segurança. Ao constatar que Nisman não atendia aos telefonemas, os agentes resolveram
levar a mãe do procurador até o edifício onde o filho morava. Ao constatar que
a porta estava fechada por dentro, chamaram um chaveiro para que conseguisse abri-la.
Ao adentrarem o local, encontraram o corpo de Nisman caído. Ao lado do corpo estava
uma arma calibre 22 e uma capsula de bala.
Assassinato?
Suicídio? Ou suicídio induzido?
O que levaria ao suicídio um homem que quatro
dias antes apresentara grave denúncia contra a presidente Cristina Kirchner, o
chanceler Héctor Timerman e outros dirigentes argentinos, e que, no dia
seguinte, apresentaria, no Congresso, detalhes do caso? Nisman acusava-os de ter acobertado o Irã, em
suposto envolvimento no atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina
(Amia), tendo em vista a manutenção de acordos comerciais entre os dois países.
A tragédia ocorrida no dia 18 de julho de 1994 deixando 85 mortos e 300
feridos. À exemplo do ataque terrorista ocorrido contra a embaixada israelense
em 1992, matando 29 pessoas, esse de 1994 também nunca foi esclarecido.
As
primeiras investigações acerca do atentado à AMIA indicavam uma autoria dos sírios
que teriam planejado o atentado em vingança contra o então presidente Carlos
Menem, que governou o país de 1989 a1999, que teria tido sua candidatura
financiada em troca de tecnologia nuclear. Tecnologia essa que nunca foi
recebida por Menem. Outro motivo da vingança seria o fato de ele ter apoiado os
Estados Unidos, na guerra contra o Iraque, depois que esse país invadiu o
Kuait. Após se ter descoberto que o juiz que cuidava do caso comprou um
depoimento falso, as investigações que apontavam essa linha foram arquivadas.
No
governo de Nestor Kirchner, que governou o país de 2003 a 2007, Alberto Nisman
foi encarregado de reabrir o caso. As investigações de Nisman apontaram para
uma participação iraniana no atentado, cuja execução teria ficado a cargo de um
grupo xiita do Líbano. Apoiado nas evidências que tinha, Nisman pediu a captura
de altos funcionários do regime iraniano, com a finalidade de interrogá-los. As
investigações avançavam, e em 2007, um alerta vermelho foi emitido pela Interpool
para cinco dos oito acusados. Os iranianos, porém, nunca admitiram qualquer
participação no ato terrorista.
Após
anos fugindo da verdade, em 2013, o caso ganhou novo capítulo e Argentina, agora
comandada por Cristina Kirchner, e o Irã, firmaram um acordo no sentido de
esclarecer a verdade. formaram então, uma comissão da verdade. À época, o
acordo foi bastante criticado por amplos setores da sociedade, inclusive, pelo
próprio Nisman.
No
dia 14 de janeiro deste ano, quatro dias antes de morrer, Alberto Nisman havia
acusado a presidente argentina e seu chanceler, de terem negociado o acordo
firmado em 2013 com os iranianos, para, em segredo, acobertar os suspeitos, dos
quais ele havia pedido a prisão anteriormente, causando desse modo, a morte da
investigação. O acordo permitia que os acusados iranianos fossem ouvidos em seu
próprio país, sendo que, Ahmad Vahidi, um dos principais acusados era, na época,
Ministro de Defesa.
O
documento elaborado pelo promotor tem 300 páginas e é baseado em escutas
telefônicas. Ainda segundo Nismam, os motivos dessa escusa negociação teriam
sido econômicos: O governo argentino teria interesse em reatar os laços com o
Irã, país com o qual trocaria grãos e armas por petróleo.
Diante
das graves acusações do promotor, a oposição pediu que ele fosse ao Congresso
para que desse detalhes da acusação que fazia contra o governo. O depoimento
seria dado naquela segunda-feira, mas o promotor foi encontrado morto horas
antes.
Estaria
o governo argentino envolvido no assassinato cinematográfico de Nisman?
“…
E ficamos com o canto, ficamos com a alegria, ficamos com esse grito de ‘viva a
Pátria’. E para eles, para eles deixamos o silêncio. Sempre gostaram do
silêncio, deixamos para eles o silêncio, que é ou porque não têm nada a falar
ou porque realmente não podem falar o que pensam”. Essas foram as palavras da
presidente argentina, recentemente, em um discurso na Casa Rosada. A resposta
do povo argentino a essas palavras foi grandiosa, emblemática e significativa.
Em
mais uma das cenas que parecem saltar das telas do cinema e invadir a dura
realidade, os argentinos, debaixo de pesada chuva, munidos de guarda-chuvas,
marcharam, em completo silêncio. E eles eram muitos. Milhares deles. Um mar de
gente invadindo às ruas. Enquanto os céus choravam, os argentinos marchavam.
Apesar de inúmeros, falavam a poderosa linguagem do silêncio. Segundo
estimativas, cerca de 400 mil pessoas aderiram a marcha.
Abaixo,
compartilho texto do site El País/Brasil, falando a respeito dessa marcha silenciosa,
organizada pelos argentinos ,na
quarta-feira (18).
***
Milhares
de pessoas homenageiam Nisman e desafiam o ‘kirchnerismo’
Francisco Peregil - Buenos Aires
Silêncio
e aplausos em meio ao vento e à chuva. Essa é a homenagem que dezenas de
milhares de pessoas renderam em Buenos Aires à figura de Alberto Nisman, o
promotor que morreu em 18 de janeiro, quatro dias depois de denunciar a
presidenta. As previsões meteorológicas eram de chuva forte e muitos chegaram
com guarda-chuvas. Outros procuraram refúgio debaixo de toldos e árvores. O
resultado foi que depois de um mês cheio de insultos, acusações, censuras e
críticas, o silêncio se impôs. O silêncio estrondoso de dezenas de milhares de
pessoas caminhando lentamente debaixo da chuva.
A
marcha foi convocada por cinco promotores como uma homenagem ao companheiro
falecido quando se cumpre um mês de sua morte. Era um fato insólito. O Poder
Judicial, ou parte dele, jamais havia convocado uma marcha ao longo das últimas
três décadas de democracia argentina. Os principais dirigentes da oposição se
somaram imediatamente à iniciativa. Mas o Governo viu uma tentativa de
desestabilização, uma forma suja de fazer política sob o pretexto de render
homenagem ao promotor morto. Entre as duas posições ficou gente como o prêmio
Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel, que se mostrou crítico ao Governo e também
aos organizadores da marcha, que acusou de oportunismo político.
Havia
grande expectativa em relação à decisão que tomaria a ex-esposa de Nisman, a
juíza Sandra Arroyo Salgado, mãe de suas duas filhas. Ela mesma havia pedido,
semanas antes, que a investigação sobre a morte de Nisman não fosse politizada.
Finalmente, participou da marcha com as duas meninas, de 7 e 15 anos. Arroyo
Salgado esclareceu, em um comunicado no dia anterior, os motivos pelos quais
havia decidido participar com suas filhas: “Nossa presença está voltada a
prestar um reconhecimento à pessoa que ele foi e ao funcionário cuja
incondicional e valente entrega ao trabalho deve ser destacada”.
Os
ministros de Cristina Kirchner alegaram várias razões para explicar sua
ausência: que alguns dos promotores que organizavam a marcha só possuem fins
políticos, que os dirigentes opositores que se somaram à marcha tampouco
pretendiam prestar uma homenagem a Nisman, mas tinham interesse eleitoral
quando restam apenas oito meses para que se realizem as eleições presidenciais
de 25 de outubro. Mas quem marcou a divisão foi a própria presidenta, que na
semana anterior concluiu assim um discurso na Casa Rosada entre os vivas e
cantos dos militantes kirchneristas: “E ficamos com o canto, ficamos com a alegria,
ficamos com esse grito de ‘viva a Pátria’. E para eles, para eles deixamos o
silêncio. Sempre gostaram do silêncio, deixamos para eles o silêncio, que é ou
porque não têm nada a falar ou porque realmente não podem falar o que pensam”.
Houve
muito silêncio, desde as imediações do Congresso, onde começava a marcha, até a
Praça de Maio, onde ela terminava. Era possível ver os mesmos cartazes que
foram vistos na noite em que faleceu o promotor: “Verdade e justiça”, “Todos
somos Nisman”. “Lamento ver muito pouca juventude e muita gente mais velha”,
queixava-se uma manifestante para o canal Todo Noticias, do grupo Clarín. Às
vezes se escutava algum coro: “Não temos medo, não temos medo”. Outros gritavam
simplesmente “Argentina, Argentina”.
Os
locutores perguntavam aos cidadãos por que iam à marcha e as respostas eram
muito variadas, mas mostravam um cansaço da política do Governo. Uns reclamavam
justiça, alguns recordavam a oposição ao acordo que a Argentina assinou com o
Irã (motivo da acusação de encobrimento que Nisman fez contra Cristina
Kirchner), outros expressaram seu desejo de lutar por um país para seus netos,
alguns se queixavam da corrupção, outros da insegurança... E a maioria dos
participantes pertencia à classe média e média alta, a mais crítica ao Governo.
A
manifestação mostrou a imagem perfeita da divisão social que a Argentina está
sofrendo nos últimos anos.
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