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Mensageiros da globalização
Posted by Cottidianos
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00:24
Quarta-feira,
11 de janeiro
Morador de rua no centro de Campinas, SP |
Na
segunda-feira, (09), aos 91 anos, partia para a eternidade o sociólogo e
filosofo polonês, Zygmunt Bauman, um dos mais influentes intelectuais do século
XX. Amor Líquido, um dos livros de
Bauman, discute o modo como às relações da sociedade tendem a ser cada vez
menos frequentes e duradouras.
Este
blog homenageia o polonês, publicando um de seus textos, originalmente, publicado
na revista europeia online, Etiópia Magazine,
e reproduzido agora aqui neste espaço democrático de informação.
Mensageiros da Globalização analisa a
atitude da Europa diante da onda de imigrantes que chegam todos os dias ao seu
território.
Outra
palavra para substitui com propriedade a palavra “refugiados” é, sem dúvida, “excluídos,
apesar de em contextos diferentes, também significarem coisas diferentes.
Excluídos
existem em todos os lugares: na América do Sul, do Norte, na Ásia, na Europa, e
em qualquer parte do mundo. E quem são os excluídos? São aqueles forçados a
essa condição, pois, em sã consciência, ninguém quer para si mesmo, e para os
seus, essa condição. É uma cruz pesada. E quem, em sã consciência, escolhe uma
cruz pesada para carregar?
Pensemos
no mundo como uma grande engrenagem. Uma grande máquina produtora de riquezas. Nessa
engrenagem, algumas peças não se encaixam, ou por não contribuírem para gerarem
lucro, ou por questão de desigualdade.
Abre-se
aqui um parêntesis para citar o conceito de desigualdade, formulado por
Jean-Jacques Rousseau, no livro, Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. No
referido livro, Rousseau fala de dois tipos de desigualdade entre os homens.
Uma física e que envolve a questão da idade, saúde, forças do corpo, e
qualidades do espírito ou da alma, e outra a qual ele chama de desigualdade
moral ou política, e que envolve aspectos referentes aos diferentes privilégios
de que alguns homens desfrutam em relação aos outros, e nessa última estão
contidos os conceitos de riqueza, poder, e dominação.
Os
excluídos ora são jogados para fora da máquina, e encostados num canto qualquer da
sociedade, pela primeira espécie de desigualdade citada por Rousseau, ora pela
segunda. Já os refugiados caem mais para a segunda espécie de desigualdade, uma
vez que eles não fogem de seu chão, de seu solo natal, de suas pátrias amadas,
por uma limitação física, mas, no rastro de todo refugiado está a marca da fuga
de um sistema político tirano opressor, ou de uma denominação religiosa radical,
dentre outros motivos.
Fugindo
do inferno, os refugiados batem então na porta da Europa. E a Europa, fica
dividida, entre abrir, ou fechar suas portas. Alguns europeus querem abrir às
portas. Outros querem fechá-las.
Não
é difícil entender o dilema europeu. Andando pelas ruas da cidade de Campinas,
quantos excluídos se veem. São centenas deles a pedir e mendigar pelas ruas. Principalmente,
à noite quando as marquises das lojas da região central viram abrigos de
moradores de rua. Muitos passam por aquelas paragens receosos. Outros nem
passam. Quando, na verdade, os que ali estão querem apenas um lugar onde
repousar a cabeça.
Em
todo esse caldeirão, e ainda citando a cidade de Campinas, interior de São
Paulo, como exemplo, a onda crescente de violência que assola as grandes e
médias cidades brasileiras, faz com que o citadino se desumanize. As pessoas
falando a mesma língua, sob os mesmos costumes, se tratam com desconfiança. É a
violência desumanizando. Na grande maioria das vezes o que se aproxima é de
paz, e quer apenas passar sossegado, mas a neurose é bem maior e provoca
afastamento entre os seres.
Em
escala bem mais ampliada é o que acontece em território europeu. Os que são a
favor de abrir às portas a quem necessita, e quem vem de uma viagem que é um
verdadeiro calvário em vida, pensam em humanizar. Os que querem fechar as
portas pensam no terror, e na violência por ele provocada, e se amedrontam. Como
diz o ditado popular “por um, todos pagam”.
Enquanto
isso, as sociedades mundo aforam apenas aumentam um abismo, criam excluídos,
forjam refugiados... e caminham sem saber para um beco sem saída.
Abaixo,
este blog compartilha o texto de Zygmunt Bauman, conforme prometido no segundo
parágrafo dessa postagem.
***
Onda de refugiados na Europa |
Mensageiros
da globalização
Zygmunt Bauman, o filósofo da
modernidade líquida, reflete sobre a atitude da Europa diante da chegada de
refugiados às suas costas
Zygmunt Bauman, via El País
Brasil
As
fronteiras não são traçadas levando em conta as diferenças; as diferenças são
buscadas, achadas ou inventadas em função de fronteiras que já tinham sido
traçadas, ou pelo menos assim afirmou e ilustrou profusamente o grande
antropólogo norueguês Fredrik Barth em sua obra magna Grupos Étnicos e suas
Fronteiras(publicado com Teorias da Etnicidade, Editora da Unesp).
Há
um desejo fervente de procurar ou inventar diferenças como forma de legitimar a
posteriori a presença de limites para justificar a mútua separação e a dupla
linguagem orwelliana, a tática dos dois critérios de medição e a diversidade de
códigos de conduta pensados para favorecer ou salvaguardar nada menos, e nada
mais, que muros de concreto de quatro metros de altitude, alambrados e prisões
ou acampamentos que aguardam os intrusos.
Estamos
vendo hoje como a Europa se dedica a elevar práticas descritas por Barth, até
agora consideradas excentricidades de populistas sem escrúpulos, à categoria de
critério legal autorizado e universalmente vinculante. A política que até há
pouco tempo era associada e um elemento marginal e errático da sociedade
europeia está passando à toda velocidade ao centro do espectro político.
Desde
o desastre ocorrido em outubro de 2013 diante das costas de Lampedusa, “as políticas
dos dirigentes europeus não mudaram”, segundo escrevia Maximilian Popp em seu
artigo Um Olhar Interno À Vergonhosa Política de Imigração da UE, publicado em
11 de setembro de 2014 na Der Spiegel: “Quase não existe via legal para os
refugiados na Europa: nem para a maioria dos sírios, dos quais muito poucos
chegam à Alemanha na condição de refugiados como parte de uma quota, nem para
os iraquianos nem para pessoas em dificuldades procedentes de países da África
Ocidental. Quem deseja pedir asilo na UE tem que chegar antes de forma ilegal,
em barcos de traficantes de pessoas, escondidos em caminhonetes ou em voos
comerciais com passaportes falsos. A UE está fechando suas portas... A
transformação da União Europeia em uma fortaleza criou as condições que causaram
tantas mortes diante de suas fronteiras. Muitos refugiados escolhem a
perigosíssima rota do Mediterrâneo porque a Frontex está fechando as rotas
terrestres”.
Para
todos os efeitos, a reação da UE diante da tragédia de 2013 em Lampedusa è um
convite permanente a suas inumeráveis repetições. A explosão de sentimentos
fraternais desencadeada pela fotografia do cadáver de Aylan Kurdifoi breve. As
fronteiras da Europa estão voltando a fortificar-se frente aos outros
indesejados, e as condições para entrar são cada dia mais estritas.
Ao
mesmo tempo, as expressões de solidariedade para com os seres humanos que vivem
esta tragédia humana ficaram relegadas outra vez à margem, de modo que o
processo político fica à mercê dos alarmistas, e o cenário público, em mãos da
insensibilidade moral e da indiferença. O debate político volta a recorrer ao
catálogo dos argumentos mais batidos, uma mistura de medos econômicos e de insegurança.
No
debate atual não se estudou suficientemente uma das causas fundamentais desta
resposta apagada, talvez a que inspira todas as demais reações. O fato de que
não podemos deixar de nos dar conta de que o aparecimento repentino e maciço de
desconhecidos que batem à nossa porta é um fenômeno que nem fomos nós que
provocamos nem podemos controlar. Não é estranho que, para muitos, as
sucessivas ondas de imigrantes sejam (parafraseando Bertolt Brecht) “presságios
de más notícias”.
Lembram-nos
sem cessar o que adoraríamos esquecer ou, melhor ainda, fazer desaparecer:
algumas forças globais, distantes, que às vezes podem ser ouvidas, mas são
intangíveis, ocultas e misteriosas, e com a capacidade de se imiscuírem em
nossas vidas ao mesmo tempo que desprezam e ignoram nossas preferências.
A
verdadeira culpa imperdoável das vítimas colaterais dessas forças, assim que se
transformam em nômades sem lar, é que trazem à luz a realidade da (incurável?)
fragilidade de nosso conforto e da segurança de nosso lugar no mundo. E por
isso, por uma lógica viciada, tende-se a vê-las como tropas de vanguarda que
estão montando seus quartéis entre nós.
Estes
nômades, que não estão assim por vontade própria, mas pelo veredito de um
destino desapiedado, nos fazem lembrar de um jeito irritante da vulnerabilidade
de nossa posição e da fragilidade de nosso bem-estar, É um costume humano,
humano demais, culpar e castigar os mensageiros pelo odioso conteúdo da
mensagem que transmitem, em vez de responsabilizar as forças mundiais incompreensíveis,
inescrutáveis, aterrorizantes e logicamente ressentidas que suspeitamos que são
as culpadas do angustiante e humilhante sentimento de incerteza existencial que
nos arrebata a confiança e causa estragos em nossos planos de vida.
E
embora não possamos fazer nada para controlar as assombrosas forças da
globalização, escorregadias e distantes, pelo menos podemos desviar a irritação
que nos produzem e descarregá-la, via um intermediário, sobre suas
consequências, que estão perto e ao nosso alcance.
Podemos,
por assim dizer, exorcizar o impressionante fantasma em uma efígie. Como é
natural, isso não serve para erradicar o problema pela raiz, mas talvez possa
aliviar durante algum tempo a humilhação de nosso infortúnio e a
impossibilidade de lutar contra a precariedade incapacitante de nosso espaço no
mundo.
Tudo
isso, repito, não alcança nem de longe as raízes da tragédia humana que estamos
presenciando, nem muito menos a possibilidade de evitar que nos afunde ainda
mais nas turvas águas da indiferença moral e da desumanidade. Essas respostas a
este desastre humano equivalem a depositar os cruéis dilemas que nos apresenta,
nossas responsabilidades morais e nossos pesos na consciência, nos ombros de
outros e, em uma violação flagrante do imperativo moral categórico de Kant,
fazer aos outros o que não gostaríamos que fizessem a nós.
Induzem-nos
a separar em vez de unir e, dessa forma, ajudar as forças globais
descontroladas na imposição de sua estratégia de divide e vencerás, a causa
principal desta catástrofe. Por mais custoso que seja oferecer solidariedade às
vítimas deliberadas e colaterais dessas forças, por mais dolorosos que possam
ser os sacrifícios pessoais que exigem de nós agora, essa é, em longo prazo, a
única resposta com possibilidades realistas de evitar outros desastres humanos
e o agravamento do atual.
Georg
Simmel ressaltou que o conflito é um prelúdio à integração: um instante de
contato, de impacto, uma tentativa (fracassada) de eliminar uma mancha escura
de uma paisagem limpa e a decisão de abrir espaço nela. Até que o enfrentemos,
o desconhecido continua sendo estranho, estranho dos pés à cabeça,
incomunicável por natureza, e daqui à eternidade.
O
conflito é bater em uma porta completamente fechada e pedir ou exigir que se
abra o postigo e o intruso seja examinado em detalhes. Os que estão atrás da
porta na qual é possível bater podem reagir antecipadamente instalando
fechaduras mais sólidas e cercando a casa de câmeras de segurança.
Se
fazem isso, a comunicação — o caminho real para a fusão de horizontes de
Hans-Georg Gadamer — é rompida, ou, melhor dizendo, é cortada pela raiz. Simmel
sugeria que à parte de que o conflito engendre amor ou ódio, pode proporcionar
uma saída da selva do isolamento recíproco, embora com a condição de que haja
diálogo, que equivale ao mútuo reconhecimento de que a condição humana é
compartilhada, ou seja, transformando o muro da fronteira em uma ponte.
O
primeiro obstáculo para a saída do isolamento recíproco é a rejeição ao
diálogo: o silêncio do distanciamento, a falta de atenção, o desprezo e a
indiferença. Em lugar de amor e ódio, a dialética do traçado de fronteiras é
concebida como uma tríade de amor, ódio e indiferença ou abandono. Sobre o
vício ou o pecado da indiferença, o papa Francisco disse, em 8 de julho de
2013, durante sua visita a Lampedusa, o lugar e o instante em que começou a
maré atual de mal-estar e a posterior debacle moral: “Quantos de nós, eu
incluído, perdemos o rumo; já não estamos atentos ao mundo em que vivemos; não
nos importa; não protegemos o que Deus criou para todos, e acabamos sendo
incapazes até de cuidar uns dos outros. E quando a humanidade perde o rumo,
ocorrem tragédias como a que presenciamos... É preciso se fazer a pergunta:
quem é responsável pelo sangue destes nossos irmãos e irmãs? Ninguém! Esta é
nossa resposta: não sou eu; não tenho nada que ver com isso; deve ser outra
pessoa, mas é claro que não eu... Em nosso mundo, hoje, ninguém se sente
responsável. Perdemos o sentido da responsabilidade por nossos irmãos e
irmãs...A cultura do conforto, que nos faz pensar somente em nós mesmos, em
bolhas de sabão que, por mais belas que sejam, são insubstanciais. Oferecem uma
ilusão vã e passageira que desemboca na indiferença para com os outros, até na
globalização da indiferença. Neste mundo globalizado, caímos na indiferença
globalizada. Nós nos acostumamos ao sofrimento dos outros: não me afeta, não me
preocupa, não é assunto meu”.
O
papa Francisco nos faz um chamado para “eliminar a parte de Herodes que está à
espreita em nossos corações. Peçamos ao Senhor a graça de chorar por nossa
indiferença, de chorar pela crueldade de nosso mundo, de nossos próprios
corações e de todos que, no anonimato, tomam decisões sociais e econômicas que
abrem a porta a situações trágicas como esta. Alguém chorou? Alguém chorou hoje
em nosso mundo?”.
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