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Menino Bernardo Boldrini: Uma vida breve, marcada pelo sofrimento – Parte II

Posted by Cottidianos on 00:06
Terça-feira, 07 de abril

Somewhere over the rainbow, way up high
There's a land that I heard of once in a lullaby
Somewhere over the rainbow, skies are blue
And the dreams that you dare to dream really do come true
(Over The RainbowMusic by Harold Arlen and lyrics by E.Y. Harburg)

Em algum lugar, além do arco-íris, bem lá em cima
Existe uma terra sobre a qual ouvi uma vez em uma canção de ninar
Em algum lugar além do arco-íris, os céus são azuis
E os sonhos que você ousa sonhar se tornam realidade
(Além do Arco-Íris – tradução)



Saindo de meu próprio corpo, vi o homem com a pá na mão. Ele tinha terminado de cavar o buraco. Era uma cova rasa. Depois o vi ajudando as duas mulheres a levarem o corpo frágil e inerte de uma criança a tal cova. Entrei em desespero. Disse a eles para não enterrarem aquela criança porque, talvez, ela ainda estivesse viva. “E se esta criança não estiver morta? Vocês estarão cometendo um crime ainda mais cruel e covarde.” Mas eles não me ouviam. Bati em seus ombros. Joguei areia para cima, provocando uma pequenina nuvem de poeira, mas de nada adiantou. Elas jogaram o corpo da criança dentro da cova. Vi quando Kelli tirou um vidro de soda cáustica de dentro da bolsa e jogou em cima do pequeno e inocente corpo. “É necessário?” Perguntou a mulher que a havia ajudado. “Sim, é para que o corpo se decomponha mais rápido, e também para não deixar cheiro”, disse ela friamente.

Deixaram o corpo da criança ali e foram embora. O interessante é que tudo agora me parecia diferente. O cheiro da relva... Huumm! Que gostoso! Podia senti-lo mais forte que antes. O cansaço da viagem que sentira minutos atrás desaparecera e fora substituído por um grande bem-estar. Meu corpo estava leve. Tinha a impressão de que podia até flutuar, se quisesse. Os raios de sol caiam sobre a clareira, atravessando a copada das árvores e debruçando-se sobre um riacho próximo, provocando uma incrível explosão multicor. Estou aqui pensando numa palavra para traduzir essa maravilhosa experiência para vocês... Vejamos... Deixem-me pensar um pouco. Um prisma! Isso. O encontro dos raios de sol com as águas do riacho se assemelhava a um prisma... Um mágico e magnífico prisma... Ou como um arco-íris cem vezes mais belo do que os que costumamos ver no céu.

O voo das pequenas borboletas tornara-se tão suave e belo. Eram como se elas fossem bailarinas celestes, executando passos magníficos em torno das flores. As flores, elas mesmas, exalavam um delicioso perfume. “Onde será que haviam conseguido flores de tão agradável perfume? Meu nariz nunca havia experimentado odores tão deliciosos, nem mesmo em meio aos caros perfumes importados que havia na casa de meu pai”, pensei eu.

De repente, a clareira foi inundada por uma luz azulada. Assustei-me e corri para detrás de uns arbustos. Aos poucos, a luz foi tomando forma de homem, até que, por fim, assumiu completamente a forma humana. Falou-me em voz doce e suave, quase sussurrando. “Sei que está aí garoto. Vem para cá Bernardo. Saia logo do meio destes arbustos”. “Bernardo, ele me chamou de Bernardo. Como sabe meu nome?” Na voz do homem que me falava havia tanta mansidão que conseguiu afastar de mim todo o medo. Vi que não havia motivos para temores infundados, e resolvi sair do meio dos arbustos, ao mesmo tempo em que deixava os arbustos que me serviram de esconderijo, outras duas luzes, uma do lado esquerdo e outra do lado direito do homem, assumiam a forma de criança. A que estava do lado direito dele assumiu a forma de menino, e a do lado esquerdo, assumiu a forma de menina. “Que estranhos acontecimentos seriam aqueles... E quem seriam aqueles seres?” Perguntava-me.

“Viemos levá-lo para casa”, disse a primeira forma que havia se transformado em homem, gentilmente, estendendo as mãos em minha direção. As vestes deles eram luminosas e lhe davam um ar angelical. O menino tocava uma flauta de sons muito doces e harmoniosos. Com desenvoltura, a menina tocava uma harpa. Os sons eram simplesmente maravilhosos e enchiam de esperança o coração.

Então o homem olhou-me com os olhos tão profundos e cheios de amor... Continuava com as mãos estendidas em minha direção, como a esperar que eu tomasse a decisão de caminhar na direção dele. Eu estava hesitante. “Estamos esperando que venha conosco, Bernardo. Grandes alegrias o esperam. Entretanto, não podemos obrigá-lo a vir conosco. A decisão de vir conosco ou não, é inteiramente sua”.

De repente, minha visão adquiriu um sentido o qual ainda não havia experimentado antes. Na verdade, que eu nem sabia que existia”. Alcancei, na estrada, de volta, o carro em que iam os três personagens que havia enterrado o corpo daquela criança. Suas faces sombrias, eram o próprio retrato do mal. Um olhar mais adiante, e eu já estava em Três Passos, minha terra querida. Via meu pai com uma expressão distante e fria. Era como se estivesse visualizando uma pedra, ao invés do coração dele.

Senti então um grande vazio que veio acompanhado de uma tontura. Volvi os olhos para o homem e falei:

— “O Sr. disse que veio que me levar para casa. O Sr. quer dizer, que vai me levar de volta para Três Passos. Mas como? Não vejo seu automóvel”.

— “Não preciso dele”, respondeu ele, pacientemente.

— “Para onde vai me levar então?”

— “Para a Cidade Celeste”, respondeu ele, sem hesitação.

— “Para a Cidade Celeste”? “Então eu morri?” Perguntei atônito.

— “Ora Bernardo, faça-me o favor. Disse ele demonstrando certa impaciência pela primeira vez. Se você tivesse morrido não estaria falando comigo agora. Nem estaria vendo toda essa deslumbrante paisagem que o circunda. Concorda?”

— “Você tem razão. Faz sentido o que disse. Se não morri... Então o que aconteceu comigo?”

— “Você apenas deixou para trás a casca que lhe prendiam ao mundo material a qual vocês chamam de corpo humano.”

A pausa que se seguiu ao diálogo entre nós, era quebrado apenas pelas doces notas dos instrumentos musicais tocados pelas crianças. A pequena pausa que fizemos no diálogo pareceu ter sido uma eternidade. Uma luz parece então ter clareado minha consciência, e eu compreendi tudo.

Silenciosamente — palavras humanas não mais eram necessárias — dei alguns passos na direção do homem de vestes luminosas e de seus dois pequenos e iluminados ajudantes. Segurei firmemente em suas mãos. Ele olhou-me profundamente nos olhos, como a dizer: “Tenha confiança. Você está seguro, e em boa companhia”.




Demos alguns passos e um pórtico luminoso ergue-se diante de nós. Caminhamos mais alguns metros e passamos por ele. E tudo foi diferente.

Chegamos a uma cidade com uma arquitetura ultramoderna e funcional. Fiquei surpreso, confesso que não esperava encontrar tamanhas maravilhas no mundo espiritual. Na face da terra nunca vira coisa igual. A cidade era muito limpa, asseada e arborizada. Não se via a mais leve sujeira pelas ruas.

Fui levado pelos mensageiros a um prédio branco de grandes dimensões. Aquelas formas geométricas eu reconheceria em qualquer lugar: Era um hospital. Muitas pessoas trabalhavam ali. O branco era o tom dominante, tanto nas roupas, quanto na estrutura de um modo geral.

Dois enfermeiros se aproximaram de nós.

— “Leve-o para a ala infantil”, disse amavelmente o homem que me havia trazido até ali. Amanhã, passarei para ver como ele está. Dirigindo-se às crianças, ele disse: Muito obrigado, crianças, por mais uma missão cumprida, e com sucesso.”

Os enfermeiros puseram em uma maca e me levaram a ala infantil. Enquanto nos dirigíamos para lá, eu arrisquei perguntar:

— “Por que estou em hospital, indo para uma ala infantil? Afinal de contas, não estou doente. Sinto-me perfeitamente bem.”

— “Tem certeza de que não está doente?” Perguntou um dos enfermeiros sorrindo.
— “Absoluta!” Respondi, sério.

— “Diz isso porque não consegue ver como está seu coração”, disse o outro enfermeiro que havia permanecido calado até aquele instante. “Ele está bem machucado e precisará de muitos cuidados”.

— “Aprenda a primeira lição, garoto! A ordem aqui é: “corações harmoniosos”. E você precisa colaborar”.

Chegamos à ala infantil. Logo percebi um lugar suave, porém ainda carregado por certo sofrimento. Ouvi choros e gemidos. Percebi também rostos mergulhados na tristeza e angustia.

Percebendo meu olhar interrogativo, um dos enfermeiros explicou:

— “Essas crianças sofreram tanto quanto você, mas chegaram aqui cheias de ódio e rancor em relação a seus opressores e isso agrava a situação delas. Torna o tratamento mais difícil. Em relação a elas o seu coração tem apenas alguns pequenos arranhões. Entendeu?”

— Aham! Murmurei.




Passavam os dias. A equipe de médicos e enfermeiros era toda cuidados para comigo, e para todos os que estavam na enfermaria. Já me sentia bem melhor em relação ao dia em que chegara. Podia ir ao pátio, tomar banho de sol. Sol que, para mim era um refrigério. Sua luz suave incidia sobre minha pele inundando-me de gotas de luz e entusiasmo. Aproveitava bem as propriedades curativas que aqueles raios traziam para meu corpo. Melhor dizendo, para meu novo corpo. No pátio do hospital havia muitas árvores e jardins esplendidos. Tudo muito bem cuidado e asseado. As rosas floresciam com tanta vitalidade que dava gosto ficar olhando. Sentir o perfume delas então...

Silenciosamente, todos os dias, aguardava pela visita do homem de vestes luminosas que fora me buscar na terra. Já estava impaciente, pois ele prometera voltar no outro dia e até agora não havia aparecido. Pensei até que já tivesse se esquecido de mim. Afinal de contas, quem era eu em meio a todo aquele vasto universo de pessoas precisando de cuidados. Não aguentei a curiosidade e, certo dia, perguntei a um dos enfermeiros:

— “Aquele homem de vestes luminosas que foi me buscar na terra... Ele não aparece por aqui?”

— “O Gabriel?! Você está querendo saber se ele não vem lhe visitar? Pode fazer a pergunta de forma direta. Aqui nesse lugar, conhecemos seus pensamentos”.

— “Conhecem meus pensamentos?! Perguntei surpreso

— “Sim. Isso por aqui é natural. Logo, logo também você vai ter aulas de como fazer isso. Mas, voltando a sua pergunta “disfarçada” de curiosidade, continuou ele sorrindo, Todos os dias, ele pergunta de você. Quer saber como vai a sua recuperação. E tudo o mais que se quer saber de alguém que está em recuperação em uma ala infantil de um hospital. Qualquer dia, quando você menos esperar, ele aparece para lhe visitar”.

Fiquei em silêncio. Tentando disfarçar a grande alegria que sentia no íntimo de meu coração. Alguém, além dos médicos e enfermeiros, se preocupava comigo, naquele lugar. Senti-me amado e querido. Essa sensação caiu em minha alma, como o bálsamo cai sobre uma ferida. Uma enorme ferida.

Passaram mais alguns dias e, finalmente, ele apareceu. Trazia-me flores. Elas não eram brancas, nem azuis, nem amarelas. Era uma mistura de todas essas cores e formavam um belo buquê de rosas. Achei-as esplendidas!... E que perfume!.. Percebendo o meu encanto pelo ramalhete diferente de rosas que, eu carinhosamente, segurava entre as mãos, ele disse:

— “Não se espante com as rosas. Estas são as mais simples que temos aqui. Há outras ainda mais deslumbrantes.”

Enquanto ele falava, percebi mais uma vez, como era suave sua voz. Quanta doçura e quanta brandura brotavam de seu coração. Acho que o peguei de surpresa, quando lhe fiz uma pergunta, que já vinha fazendo a mim mesmo desde que chegara àquele lugar.
— “Você é Deus, ou Jesus Cristo?!”

Ele pareceu nem se impressionar com pergunta. Já devia tê-la ouvido milhares e milhares de vezes.

— “Meu pequeno pupilo, você está querendo saber se eu sou Deus, o criador de todas as coisas? Não! Não sou. Sou apenas um de seus servos. Minha função aqui é servir a Ele. De que forma? Ajudando no resgate de pessoas como você. Aliás, toda a nossa vida deveria ser um ato de doação. Um ato de serviço. Em qualquer atividade que você desenvolva, deveria ser este o seu primeiro pensamento: Servir a Deus e, servindo a Ele, servir aos irmãos. Pena que humanidade mergulhada em um mar de egoísmo, ainda não tenha compreendido isso.”

— “Que legal!” Disse, cheio de alegria. “Pensei que você fosse Ele por causa de suas vestes luminosas como a luz da lua prateada que brilhava intensa nos céus do meu Rio Grande do Sul, derramando-se nas campanas, como se derramam os diamantes sob um tapete fulgurante.”

— “Ah, minhas roupas luminosas! Digo a você, meu pequeno, que o brilho delas foi conseguido a custa de muito sofrimento, de muitas provações, de muito serviço... E principalmente, de muito amor.”

— “Por que deu tanta ênfase a palavra “amor”?

— “Por que sem amor, nada somos e nada seremos. É como diz o servo, Paulo, no capítulo 13, da Primeira Carta à comunidade de Corinto:

Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, e não tivesse o amor, seria como sino ruidoso, ou como címbalo estridente. Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento dos todos os mistérios e de toda a ciência; ainda que eu tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse o amor, eu nada seria.
Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse o amor, isso de nada me adiantaria.
O amor é paciente, é prestativo, não é invejoso, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com injustiça, mas se regozija com a verdade, tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
O amor jamais passará. As profecias desaparecerão, as línguas cessarão, a ciência também desaparecerá, pois o nosso conhecimento é limitado, limitada também a nossa profecia. Mas quando vier a perfeição, desaparecerá o que é limitado.
Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei adulto, deixei de ser o que era próprio de criança. Agora vemos como em um espelho e de maneira confusa; mas depois veremos face a face. Agora o meu conhecimento é limitado, mas depois conhecerei como sou conhecido. Agora, portanto, permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e o amor. “A maior delas, porém, é o amor”.
— “Nossa, que legal! Você decorou toda a carta de Paulo aos Coríntios”. Disse eu, alegremente.

— “Decorar não é bem a palavra. Decorar é uma palavra do vocabulário humano. Aqui, nós guardamos todas as coisas no coração”. Mas, você terá muito tempo para aprender todas estas coisas”.

Fiquei pensando nas palavras da Carta de Paulo... E disse, intimamente: “Paulo diz, nessa carta, tudo o que meu pai não fez”.

Parecendo ler meus pensamentos, Gabriel disse:

— “Devemos ter piedade de espíritos como os de seu pai e de sua madrasta. Eles estão num nível vibracional muito baixo. Se você pudesse ver como eu vejo, veria que eles se arrastam pelos rios cheios de lama da vida, como zumbis. A ganância, a inveja, a soberba e a maldade roubaram a luz que havia em seus corações. Gabriel ficou pensativo por uns momentos. Em seguida concluiu: Eles terão uma eternidade inteira para se arrepender... E é bom que se esforcem para isso, pois se assim não o fizerem...”.

— “Bernardo, deixemos de lado esses assuntos densos e complicados. Você ainda não está preparado para eles. Agora, quero que feche os olhos. Tenho um presente para lhe dar, ou melhor, para lhe mostrar. Promete que não abrirá os olhos até que eu peça para abri-los?”

— “Prometo. Prometo”, disse eu, cheio de curiosidade.

Gabriel saiu do quarto, voltando instantes depois. Agora, sim. Pode abrir os olhos, devagarzinho.




Abri os olhos devagarzinho. Bem devagarzinho... E quão enorme foi a minha surpresa. Parada ali, ao lado de Gabriel — com um sorriso deslumbrante, e um livro de histórias infantis nas mãos, estava ela, minha fada predileta, a mais linda que eu já vi: Minha mãe, Odilaine — “Minha mãe!” Quão doce é pronunciar estas palavras. Em qualquer lugar do universo, o nome “mãe” será sempre um nome especial. Minha mãe estava mais linda que nunca. Ela também usava uma veste brilhante, parecida com a do Gabriel.

 Levantei-me de um pulo da cama, onde estava sentado, e dei-lhe um grande e afetuoso abraço, enquanto duas gostosas lágrimas de alegria escorriam pelo meu rosto, eliminando de vez toda mágoa, tristeza e angústia.

A um canto do quarto, Gabriel assistia a comovente cena. Após certo tempo abraçados, ele nos pediu licença e disse:

— “Faço questão de deixá-los a sós. Vocês devem ter uma porção de coisas para conversar... E eu não quero atrapalhá-los.”


Então ele saiu do quarto de mansinho, deixando eu e minha em meio a grande enlevo e felicidade.

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