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Menino Bernardo Boldrini: Uma vida breve, marcada pelo sofrimento – Parte I
Posted by Cottidianos
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19:21
Sábado,
04 de abril
“Quem quiser saber quem sou / Olha para o céu azul
E
grita junto comigo / Viva o Rio Grande do Sul
O
lenço me identifica / Qual a minha procedência
Da
Província de São Pedro / Padroeiro da Querência
Ò
meu Rio Grande / De encantos mil
Disposto
a tudo / Pelo Brasil
Querência
amada / Dos parreirais
Da
uva vem o vinho / Do povo vem o carinho
Bondade
nunca é demais”
(Querência amada – Teixeirinha)
Há
um ano, o assassinato do menino Bernardo Boldrini chocava o Brasil. o fato foi
ainda mais marcante pelo fato de o crime ter sido praticado pela madrasta do
menino, tendo sido o pai, acusado de ser o mentor do crime. Leandro Boldrini,
Graciele Ugulini, Edelvânia Wirganovicz, e o irmão de Edelvânia, Evandro
Wirganovicz, estão presos desde o ano passado e aguardam julgamento. Que se
faça justiça, é o que todos esperam.
Leandro,
Graciele e Bernardo moravam em uma bela casa, na cidade de Três Passos, porém o
menino era maltratado pelo pai e pela madrasta,. O menino foi visto pela última
vez em Três Passos, no Rio Grande do Sul, no dia quatro de abril — há exatos um
ano — por volta das 18h. Depois sumiu e ninguém mais o viu. Descobriu-se depois,
que ele havia sido levado, de carro, pela madrasta, para a cidade de Frederico
Westphalen, onde foi brutalmente assassinado. O corpo do menino foi localizado
no dia 14 de abril, enterrado em uma cova rasa, em uma área rural daquela
cidade.
Muitos
eventos em memória do menino serão realizadas entre os dias de hoje e amanhã,
na cidade de Três de Passos, no Rio Grande do Sul, onde ele morava.
O
texto a seguir, é uma singela homenagem ao menino, Bernardo Uglione Boldrini,
ao Bê, como era carinhosamente chamado pela família e pelos amigos.
Dividi
o texto e duas partes. Na primeira apresento os espinhos, na segunda, as rosas.
Gostaria de ir direto para a segunda parte, é mais bela e mais sensível, mas há
que se obedecer a ordem das coisas.
Minhas
saudações aos gaúchos.
***
“O PÉ DE ZIMBRO
Philipp Otto Runge
Muito tempo atrás, nada menos que
dois mil anos, havia um homem rico casado com uma mulher bonita e piedosa. Eles
se amavam muito, mas não tinham filhos, por mais que os desejassem. Dia e noite
a mulher rezava pedindo um filho, mas nada conseguiam.
Diante da casa havia um jardim, e
no jardim crescia um pé de zimbro. Uma vez, durante o inverno, a mulher estava
descascando uma maça debaixo d árvore, e enquanto descascava cortou dedo. O
sangue pingou na neve. “Ah” disse a mulher. “Se pelo menos eu tivesse uma
criança vermelha como o sangue e branca como a neve!”. Depois de dizer essas
palavras, começou a se sentir melhor, pois teve a impressão de que elas iriam
resultar em alguma coisa. E voltou para casa.
Um mês se passou, e a neve
derreteu. Dois meses se passaram, tudo se tornara verde.Três meses se passaram,
e as flores estavam brotando. Quatro meses se passaram, e as árvores na mata
estavam crescendo, seus galhos verdes se entrelaçavam. A mata ressoava com o
canto dos pássaros e as flores caíam das árvores. E assim o quinto mês passou.
E quando a mulher se sentava debaixo do pede zimbro, seu coração saltava de
alegria, tão perfumada a árvore estava. Ela caía de joelho e não cabia em si de
felicidade. Depois que o sexto mês passou, o fruto ficou grande e firme e ela
ficou muito sossegada. No sétimo mês ela colheu bagas do zimbro e se deliciou
com elas até ficar se sentindo mal e doente. Depois que o oitavo mês passou,
ela chamou o marido e lhe disse; “Se eu morrer, enterre-me debaixo do pé de
zimbro.” Depois disso, sentiu-se melhor e ficou tranquila até o nono mês. Então
deu a luz a uma criança vermelha como sangue e branca como a neve. Quando viu o
filho ficou tão feliz que morreu de alegria.
O marido a enterrou debaixo do pé
de zimbro e chorou dia após dia. Depois de algum tempo sentiu-se melhor, mas
ainda chorava de vez em quando. Finalmente parou de chorar e se casou pela
segunda vez.
Teve uma filha com a segunda
mulher. A criança do primeiro casamento fora um menininho. Sempre que olhava
para sua filha, a mulher sentia amor por ela, mas sempre que olhava para o
menino, ficava infeliz. Parecia-lhe que, onde quer que fosse, ele estava sempre
no caminho, e ela não parava de pensar em garantir que no fim das contas, sua
filha herdasse tudo. O demônio se apossou de tal maneira da mulher que ela
começou a odiar o menino, dando-lhe palmadas a torto e a direito, beliscando-o
aqui e soltando um sopapo ali. O pobre menino vivia aterrorizado, e quando
voltava para casa depois da escola não tinha um minuto de paz...”
“Ah,
os contos de fada!”, suspiro eu, Bernardo Boldrini. Histórias aparentemente
inocentes, mas quantas representações simbólicas elas contêm. São repletas de
problemas existenciais, conflitos familiares, invejas, ódio e desamor. Por
outro lado, encontramos neles a bondade, a solidariedade, a inocência, o
bem-querer, o amor. Não é assim, bem e mal, os dois lados de uma moeda chamada
vida? Nas criações literárias também uma questão se nos apresenta: A realidade
é que inspira os autores a escrever um mundo imaginário, tão parecido com a
vida real? Ou seria o imaginário a penetrar suas mentes e os inspirar a
escrever uma realidade imaginária que se espelha no drama humano?
Como
eu me lembro dos contos de fada! Lembro-me do cheiro dos livros novinhos...
Lembro-me de suas paginas fascinantes mergulhadas num mar de letrinhas, uns
códigos que eu nem sabia decifrar, mas amava-os. “Um dia ainda hei de escrever
histórias tão bonitas quanto essas”, pensava. O mundo colorido que havia
naquelas páginas cheias de árvores, castelos, príncipes, princesas, fadas e
bruxas, fascinavam meus olhos.
A
parte que mais gostava em tudo isso era quando uma fada, muito linda, chamada
Odilaine Uglioni, deitava-se ao meu lado, no tapete de nossa sala, e tornava-se
criança comigo, e decifrava para mim todos aqueles códigos que eu não conseguia
entender. Eu não sabia ler, é verdade, mas sabia ouvir. Ouvia atentamente
aquelas palavras que minha mãe, tão docemente, pronunciava.
Aquele
mundo de contos de fadas estava repleto de umas figuras más, chamadas
madrastas. Elas eram muito más e chegavam sempre quando faltavam às mães, seja
por motivo de morte, abandono, ou qualquer outro motivo que as obrigasse deixar
seus pequenos tesouros em outras mãos.
Nessa
linha, minha mãe me contava histórias como Branca de Neve, Cinderela e Pé de
Zimbro. Essa última contava a história de um menino que, aos perder a mãe,
sofre horrores nas mãos de uma madrasta, impiedosa, soberba e má.
Nem
sabia eu que minha vida tomaria ares de conto de fadas, com direito a bruxas
infernizando minha vida e tudo o mais.
Um
dia, aquela voz que contava história para mim, se calou. Disseram que ela havia
se suicidado no consultório da clinica de meu pai, o médico Leandro Boldrini,
com o qual ainda mantinha sociedade no negócio. Ela e meu pai estavam em
processo de separação. Ela parecia muito feliz em resolver aquela situação
pendente, a fim de que cada um seguisse o seu destino. Naquele dia, ela havia
ido ter com ele para tratar dos últimos detalhes do divórcio. Eu estava em casa
quando chegou a triste notícia. Chorei, e chorei muito. Então aquela fada tão
linda, tão bondosa e tão doce que me contava histórias tinha se calado? Aquele
anjo de candura que me embalava no berço, cantando belas cantigas de ninar, não
mais me embalaria? Aquele ser iluminado que me ajudava a atravessar em
segurança os perigos da vida, tinha ido embora?
Naquele
dia, meu dia fez-se noite. E dali em diante, meu céu tornou-se inferno.
Naquele
ano, as investigações policiais concluíram que minha mãe havia cometido
suicídio. Até uma carta que teria, supostamente, sido escrita por minha mãe,
antes de morrer, foi aceita como prova. Eu e minha avó, tínhamos as nossas dúvidas.
Nunca acreditamos de fato, nas conclusões desta investigação. Minha avó,
Jussara Uglione, nunca desistiu de encontrar a verdade, tanto é que,
recentemente, contratou peritos particulares que concluíram que a carta havia
sido forjada. Os peritos fizeram uma análise detalhada da carta de suicido e
compararam com documentos comprovadamente escritos e assinados pela minha mãe.
Eles chegaram conclusão de que a carta não poderia ter sido escrita por ela,
uma vez que havia diferenças gritantes entre a letra e a assinatura da carta de
suicídio e a letra e a assinatura de documentos escritos por minha mãe. A
família de minha mãe vai usar esse laudo para pedir a reabertura do caso.
Tal
qual nos contos de fada que ouvia, meu pai casou-se novo. Se tivesse se casado
com uma pessoa do bem, não teria havido problemas. Afinal, madrastas do bem
existem muitas. Mas eu não tive foi sorte de encontrar uma destas. A mulher com
qual a meu pai se casou era bela, falsa, dissimulada, má e muito ambiciosa, uma
ambição a qual ela levou ao extremo. No fim das contas, na natureza, mundo
físico, os polos de constituição oposta se atraem e os polos de constituição semelhante
se afastam. É a lei dos contrários. Para melhor compreendermos a ideia, basta
pensarmos no efeito do imã ou nos princípios da eletricidade.
No
mundo psíquico, natureza humana, essa lei se dá justamento pelo seu contrário,
ou seja, os semelhantes se atraem e os contrários se repelem. O que quero dizer
é que, indivíduos com a mesma afinidade de pensamento são atraídos para um
grupo, enquanto indivíduos de pensamentos e ideias e pensamentos opostos, se
mantém em outro grupo.
Penso
que quando meu pai se uniu a Graciele Ugulini, minha madrasta, era porque o
baixo nível vibracional dos dois os uniu. Em outras palavras, os dois se
mereciam.
Meu
pai era um homem muito rico. Como parte do testamento deixado por minha amada
mãe, eu teria direito a metade da herança.
Talvez
fosse esse o x da questão. Meu passou
e ver em mim um incomodo, e não um filho, e minha madrasta passou a ver em mim
uma ameaça aos seus ambiciosos e sórdidos planos.
Apesar
de rico, perambulava pelas ruas da cidade como mendigo, com roupas velhas e desgastadas.
Na escola, quando sentia fome, os amigos dividiam o lanche deles comigo, pois,
na maioria das vezes, nem lanche eles me davam para levar para a escola. O pior
de tudo eram os sofrimentos físicos e a as torturas psicológicas. Batiam em
mim. Faziam com que me sentisse totalmente insignificante dentro de minha
própria casa. Porém, em meio a todo esse sofrimento, o supremo criador sempre
colocava luzes em meu caminho, na pessoa de vizinhos e amigos queridos, que
sabiam de todas as amarguras que eu estava enfrentando após a morte de minha
mãe. Eles me levavam para a casa deles, e lá eu passava dias e dias. Para meu
pai e minha madrasta, isso era bom, e até desejável. Era como se eles se
livrassem de um traste qualquer. Muitas vezes fui ameaçado de morte. Lembro que
um dia, Kelli, que era como a chamávamos na intimidade, tentou me matar,
sufocando-me com um travesseiro, só não o fez porque a minha babá chegou bem na
hora. Kelli deu uma desculpa. A babá, Elaine Raber, desconfiou, mas não tinha
como provar nada.
Eu
sabia que corria perigo e procurei ajuda da lei. Fui sozinho ao Fórum da
cidade, procurar a Vara da Infância e da Juventude. Primeiramente, eles acharam estranho o fato
de uma criança ir sozinha ao Fórum, reclamar de conflitos familiares. Entretanto,
fui muito atendido pela promotora Dinamárcia Maciel de Oliveira. Pedi a ela
para ser adotado por outra família. Dinamárcia conversou com essa família pela
qual eu pretendia ser adotado. Era com eles com que eu, geralmente, passava os
finais de semana. Essa família, porém, disse a ela que conhecia a minha
situação, e que, apesar de gostar muito de mim, não queria assumir minha
adoção, e dessa forma, criar atritos com meu pai. Afinal, entre eles havia uma
relação de amizade.
Não
os condeno por isso, e os perdoo. Eles viam o exterior do homem. O médico
respeitado, amigo deles, e ainda por cima, morando próximos, na mesma cidade. Como
poderiam ter olhos para ver a maldade escondida naquele coração, e do que ele,
influenciado por Kelli, seria capaz de fazer?
Até
que um dia Kelli me colocou em um carro, e fomos em direção a cidade de Frederico
Westphalen. Ela estava nervosa e corria muito na estrada. Foi multada por
excesso de velocidade. O policial que aplicou a multa viu que, dentro do carro,
junto com ela, estava um menino, que era eu. Isso foi um dos motivos que ajudou
a resolver o problema com maior rapidez. Perguntei para ela, porque estava
correndo tanto, ela me disse que era porque uma amiga dela estava a sua espera
na cidade e, se ela não chegasse logo, a amiga iria ficar preocupada.
Chegando
em Frederico Westphalen, encontramos com tal amiga de Kelli, ela entrou no
carro, e seguimos para uma área rural da cidade. A paisagem era muito bonita e
eu me distaria olhando-a. Talvez, algum dia, eu, a Kelly e meu pai, tenhamos um
bom relacionamento, e consigamos viver em paz, como uma verdadeira família.
Isso era tudo o que eu mais queria.
—
“Para onde estamos indo?” Quis saber.
— “Estamos indo à casa de uma benzedeira que
mora em uma área afastada da cidade”, respondeu Kelli, secamente.
Chegamos
a um lugar afastado da cidade, cheio de mato e onde não passava ninguém. Vi um
homem cavando um buraco com uma pá. Achei que ele tivesse fazendo algum serviço
agrícola. Perguntei a Kelli o que tínhamos ido fazer ali. “Você já vai saber.”
Um pressentimento ruim me passou pela mente. Mas mesmo assim, mantive a calma.
Não havia como fugir dali. “Talvez, esteja pensando bobagem”, pensei eu mesmo,
e afastei esses pensamentos.
Elas
então estenderam uma toalha azul da cor do mar sobre a relva, e me pediram para
deitar nela. Achei tudo aquilo muito esquisito. Gritei por socorro. “Pode
gritar. Ninguém vai te ouvir mesmo.”, disse Kelli. Mesmo assim, seguraram meus
braços e puseram um pano na boca para abafar os gritos. Imobilizaram-me e me
fizeram deitar na toalha.
Kelly
retirou da bolsa uma seringa e aplicou uma espécie de sedativo na minha veia.
As coisas ao meu redor começaram a girar devagar, cada vez mais devagar. Depois
passaram a ficar opacas, como ficam em uma maquina fotográfica fora de foco.
Depois, tudo se fez silencio e paz.