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Dois Brasis que nunca se encontraram
Posted by Cottidianos
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01:17
Terça-feira,
21 de junho
“Nunca vira uma escola.
Por
isso não conseguia defender-se,
botar
as coisas nos seus lugares.”
(do
romance, Vidas Secas, de Graciliano
Ramos)
Acho
o texto que compartilharei com vocês na postagem de hoje, digno dos ambientes e
dos personagens das páginas do clássico romance, Vidas Secas, de Graciliano
Ramos.
A
inspiração para apresentar a vocês esse texto surgiu de duas notícias
veiculadas: uma pelo telejornal global matinal, Bom Dia Brasil, e outra
publicada no jornal El País Brasil.
Às
vezes fico a pensar sobre quem é o homem bom. Seria o homem bom aquele que dá o
peixe? Sim, o homem que dá o peixe é bom sem dúvida. Matar a fome de quem está faminto,
e matar a sede de quem de água necessita, são atitudes nobres, sem dúvida.
Porém, em uma segunda análise, mais acurada, vejo que a bondade do homem que dá
o peixe está no limiar do egoísmo. Está a um passo deste. Porque assim penso?
Ora, quem dá o peixe não está senão criando uma relação de dependência entre
quem doa e entre quem recebe. E, em uma relação de dependência, há sempre uma
cobrança, geralmente, por parte daquele que é doador. É justamente aí que mora
o perigo. Se um indivíduo mantém alguém dentro de uma caverna escura, e lhe
abre uma pequena janela para que, de vez em quando, o habitante do lúgubre
ambiente receba um pouco, um mínimo de luz necessária para, pelo menos,
manter-lhe vivo, esse indivíduo generoso, nada mais faz senão exacerbar sua
ignorância, transmutada em bondade.
E
o homem que ensina a pescar? Esse pode ser visto, à princípio como cruel,
egoísta, e até mesmo, mesquinho. Porém, sob um olha mais atento, este último
está dando àquele que é ajudado, a dignidade, de em um futuro muito próximo,
saber andar com as próprias pernas, ir à busca dos próprios sonhos e ideais, e
lutar por eles, para conquistá-los, se necessário. Assim, o homem que é
ajudado, não se contentará com um pedaço de peixe dado pela mão “generosa” de
alguém. Ao contrário, ele quer o peixe o inteiro. E fica feliz com isso, pois
aprendeu a armar a isca, colocá-la dentro da água, manejar o anzol do jeito certo…
e fisgar o peixe. Um, dois, três, ou tantos quantos queira, e rio lhe possa
oferecer.
Falo
em metáforas, para falar de educação. Um povo a quem é negada a luz da
educação, é um povo que vive nas cavernas escuras da ignorância. E um povo que
vive na ignorância das cavernas escuras, não deve ser condenado. Ao contrário,
é um povo a quem deve ser estendida a mão amiga. É um povo a quem se deve
ensinar a pescar, e a pescar peixe farto e bom nas águas do conhecimento.
E
o que tem feito os nossos políticos, os nossos governantes há tempos? Eles têm
feito justamente, o contrário. Negam o tesouro da educação a quem dela
necessita e, desse modo, tornam dependente uma parcela da população que os
elege. Após eleitos, os homens públicos agem, não em benefício daqueles que o
elegeram, mas trabalham em prol de seus mesquinhos projetos de poder. Mesmo
em tempos de opressão, o tempero anestésico do obscurantismo é tão forte, que
faz o oprimido aplaudir e admirar o opressor.
Foi
assim no passado, é assim no presente, e quisera Deus, que, no futuro, fosse
diferente, pois somente assim, poderíamos viver em um país onde as belas
palavras do artigo 5 da Constituição Federal, que diz:
Todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade…
fossem
cumpridas em sua total plenitude.
Volto
ao segundo parágrafo, e falo das duas notícias que me levaram a escrever este
texto. Ainda um pouco sonolento, confesso, assistia no Bom Dia Brasil, a
espetacular prisão domiciliar na qual será “encarcerado”, o ex-presidente da
Transpetro, Sérgio Machado, que fez delação premiada, motivando um pedido de
prisão por parte do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o
ex-presidente, José Sarney, o presidente do Senado, Renan Calheiros, e contra o
senador Romeró Juca, ex-ministro do governo Temer, pedido este negado pelo
ministro do Supremo, Teori Zavascki.
Machado
vai cumprir sua prisão domiciliar em Fortaleza, capital do Ceará, um dos
cartões postais do nordeste brasileiro. Mas não só isso. Tem mais. Muito mais.
Infinitamente mais. A prisão na qual o delator vai começar a cumprir pena é uma
luxuosa mansão na capital cearense, guarnecida de piscina, quadra de esportes.
A garagem não é tão grande assim. Cabem nela, apenas dez carros.
Claro,
nem precisa dizer que uma mansão dessas não fica em um bairro qualquer, mas sim
em um também luxuoso, bairro nobre de fortaleza, com direito a monitoramento
por agentes de segurança particular. Prisão é sinônimo de solidão, correto? Mas
não no caso da prisão domiciliar de Sérgio Machado. Ele terá direito a receber
visita de 27 pessoas. Dá até para organizar uma festa em casa, regada a vinhos
de excelente safra, e queijos selecionados. Ele também vai poder sair de casa
em oito datas diferentes.
O ex-presidente da Transpetro confessou que
desviou R$ 100 milhões dos cofres públicos. Ele terá que devolver R$ 75
milhões, sendo R$ 10 milhões em até 30 dias e o restante em 18 meses. Mas…
façamos as contas: 100 – 75 = 25. Noves fora zero, ficam faltando 25 milhões
embolsados por Machado dos cofres públicos. 25 milhões dá para um indivíduo
viver muito bem. Isso dói em cada coração brasileiro quando se sabe que é um
dinheiro roubado da nação verde e amarela.
Tudo
bem que a delação de Sérgio Machado é valiosa, ajudará em muito a desvendar
ainda mais o complexo esquema de desvio de dinheiro dos cofres públicos, bem
como revelar seus personagens centrais, mas, convenhamos, ele é um criminoso,
tão criminoso quanto os outros elos da criminosa corrente. Acho mordomia demais
para um sujeito dessa espécie. Não sei, talvez isso também possa servir como
incentivo para outras valiosas delações premiadas. Mas, enfim, são tantas as
coisas incompreensíveis nesse nosso Brasil…
Abaixo,
compartilho a outra notícia a qual também me referi no segundo parágrafo: uma
matéria publicada no jornal El País Brasil, de autoria do jornalista, Antonio
Jiménez Barca, intitulada, Viagem ao Brasil mais pobre, o que sempre vota no PT, e que aborda as dificuldades dos moradores de Belágua, a cidade mais pobre
do Brasil. Lá, a imensa maioria dos votos nas últimas eleições foi para Dilma
Rousseff. A leitura do texto ajudará a entender o porquê.
Juntando
os tecidos das duas reportagens para formar um diverso mosaico, teremos montado
a figura de dois Brasis que não se conhecem, nunca se encontraram: o Brasil de
Sérgio Machado, Dilma Rousseff, Lula, José Sarney, Renan Calheiros, Michel
Temer, Romero Jucá, Henrique Alves, e tantos outros figurões da nossa velha
política brasileira, e o Brasil de Belágua, que é o retrato de tantos recantos
do Brasil.
Viagem
ao Brasil mais pobre, o que sempre vota no PT
Belágua
é a cidade mais miserável do país e a de maior apoio eleitoral a Dilma
ANTONIO
JIMÉNEZ BARCA - Belágua (Maranhão) 20 JUN 2016
Um
dia, faz um mês, deixaram de construir a casa de Antônio José do Nascimento em
Belágua, no Estado do Maranhão. Os operários lhe explicaram que havia acabado o
dinheiro do programa do Governo do Estado, e foram embora, com tudo pela
metade: um esqueleto de casa sem serventia e um monte de tijolos que tostam sob
o violento sol da uma da tarde destas latitudes quase equatoriais. Alguns meses
antes, esses mesmos operários haviam contado a Nascimento, de 37 anos, com dois
filhos, de 14 e 15 anos, e a mulher doente, que o Estado ia substituir seu
velho casebre de barro e teto de palmeira, aqui chamado de taipa, por uma casa
de tijolos e cimento, como parte de um programa que incluía outras cinquenta
famílias miseráveis da cidade.
Mas
agora, nesta manhã calorenta, Nascimento contempla sua quase casa com a
melancolia de quem esteve a ponto de ganhar uma vez. Ele e a família subsistem
à base da mandioca que coletam dia após dia nas terras comunais e que constitui
sua comida principal e quase exclusiva, mesclada com água. E também do que
compram com os 381 reais da subvenção mensal do Bolsa Família.
Belágua
(uma rua asfaltada, um conjunto de casas e casebres dispersos, estradas de
terra, ninguém entre uma e quatro da tarde, jegues presos com cordas às portas
das casas, porcos e galinhas pelo caminho) é a cidade mais pobre do Brasil. Com
7.000 habitantes, situada a 200 quilômetros da capital do Estado, São Luís, a
localidade tem uma renda per capita média de 240 reais por mês, segundo o último
censo, elaborado em 2010. A taxa de analfabetismo supera os 40%. Nascimento é
um desses analfabetos. Sua mulher, derrubada na cama agora pela artrose, é
outra.
Belágua
(lojas diminutas que vivem indiretamente do Bolsa Família, crianças que lavam
mandioca no rio) ostenta outro recorde nacional: a maior porcentagem de apoio
eleitoral para Dilma Rousseff na última eleição. Uma estranha unanimidade de
95%. Nascimento também se encaixa aí: votou no Partido dos Trabalhadores (PT)
de Rousseff precisamente por causa da subvenção do Bolsa Família, instaurado
pelo Governo Lula. “Graças a isso seguimos em frente. Agora sei que tiraram
Dilma do poder. Contaram-me, porque minha televisão queimou. Não sei o que vai
acontecer conosco”, diz. Nascimento se refere não ao futuro do país em
abstrato, mas ao futuro desses 381 reais por mês, vitais para sua família. O
Governo do presidente interino, Michel Temer, garantiu que vai respeitar certos
programas sociais, incluindo esse, mas Nascimento, desconfiado e acostumado a que
as coisas se saiam mal, olha de soslaio o projeto inacabado de sua casa inútil
de tijolos sem data de término e seu rosto se enruga.
A
secretaria de Estado das Cidades e Desenvolvimento Urbano do Governo do
Maranhão, do Partido Comunista do Brasil (PC do B), reconhece, por meio de um
comunicado, certos problemas com os materiais, mas diz que já deu ordens para
que as casas sejam concluídas e os prazos sejam cumpridos.
Belágua
é um exemplo fiel do Nordeste brasileiro, atrasado, pobre e resignado à sua sorte,
que aceita a ajuda estatal um dia e com o mesmo fatalismo aceita no dia
seguinte que a tirem. Também um expoente da desigualdade descomunal que aflige
o país: enquanto nos bairros nobres de São Paulo há quem suba em um helicóptero
para contornar o congestionamento da tarde de sexta-feira, no abafado casebre
de Nascimento, sem torneiras, a água é armazenada em um pote de barro tampado
com um paninho de crochê.
Às
vezes é até pior: seu vizinho Aderaldo Ferreira, de 36 anos –também em um
casebre de barro e palha, também, na porta, com o absurdo monte de tijolos
inúteis da casa prometida– nem sequer conta com os reais do Bolsa Família.
Aderaldo tem três filhos pequenos, um deles já na escola, mas, por um enrosco
burocrático, a ajuda lhe foi negada, sem que ele saiba bem porquê. Mostra a
carteira de identidade ao jornalista, como se isso servisse para demonstrar
algo. Também é analfabeto, também vive da mandioca que arranca todos os dias.
Sua mulher, grávida, amamenta o filho pequeno sem dizer nem uma única palavra,
muda e ausente, como se tanta desgraça junta não fosse com ela.
Perto,
em outro casebre, Joana dos Santos, de 35 anos, tece tiras de folhas de
palmeiras para pagar uma dívida, contraída dois anos atrás para arcar com um
exame médico que custou 280 reais para uma filha acometida de uma estranha
paralisia. Acabará de pagar em dezembro. “Se Deus quiser”, acrescenta. Três de
suas filhas se postam ao lado. Tem oito. E três filhos. Uma faz a lição de
casa. Outra, de 12 anos, olha o jornalista com curiosidade.
— Você
vai à escola?
—
Sim
— O
que quer ser quando crescer?
— O
que Deus me der.
— Você
gosta da escola?
— Mais
quando dão merenda.
Às
quatro ou cinco da tarde, quando o sol deixa de torturar a rua, chegará o pai
com a mandioca do dia: a velha mandioca que se transforma em farinha depois de
triturada e tostada, como já faziam os índios antes de os portugueses chegarem.
Do
Bolsa Família, Joana recebe por mês 562 reais. “Não é só o dinheiro. É que o
dono da venda faz fiado porque sabe que vai receber. Quando não tínhamos [o
dinheiro], não era assim: não me venderam um peixe porque me faltavam 50
centavos. Por isso, sempre votarei em Dilma e Lula.”
Na
mesma Belágua há quem escape do círculo fechado da miséria, ignorância e
mandioca. No outro extremo da localidade, Raimundo dos Santos, conhecido como
Seu Cota (52 anos, 14 filhos, 14 netos) mantém e explora uma horta. E vende
alfaces, pepinos, tomates, batatas... Obteve no mês passado 1.500 reais por
mês, uma soma que vai aumentar no mês que vem. Conseguiu uma bomba d’água
graças a uma subvenção do Maranhão, e alguns técnicos também do Estado o
ensinaram a plantar e colher. Sua casa tem chão de lajota, uma televisão velha,
mas que funciona, e sua mulher e filhos estão vestidos e sorriem.
Aderaldo
Ferreira, o da mulher sem palavras, o da choça sem nada, o que mostra a
carteira de identidade como o documento essencial, diz que ouviu falar desse
Seu Cota, que irá visitá-lo uma tarde, que lhe perguntará como fez, como faz, e
aponta para o outro lado da cidade, como se fosse o outro lado do mundo.