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O sofrimento de Maria
Posted by Cottidianos
on
13:50
Domingo,
13 de maio
Hoje,
13 de maio, coincide de o calendário juntar duas datas a ser comemoradas: o Dia
das Mães e os 130 anos da abolição da escravatura. Para celebrar esses dois
eventos especiais esse blog brinda aos leitores e leitoras com o conto, O Sofrimento de Maria, que fala do
sofrimento e das alegrias de uma escrava negra chamada Maria, mãe do menino
Emanuel.
***
O sofrimento de Maria
Corria
o ano de 1884. O sol dourado descia por
trás dos montes na Fazenda Engenho Novo pintando o horizonte de um
amarelo-dourado que lembrava mais o ouro das minas do que a vida sofrida que
levavam os escravos naquele pedaço de chão do agreste pernambucano. A natureza
caprichosa parecia ter copiado os tons, sombras e cores de algum quadro de Van
Gogh.
Pode,
porém, o criador copiar a criatura? Mais provável é que o inverso aconteça. É
mais natural que o famoso pintor, embevecido pela delicadeza da mãe natureza e
pelo traço perfeito e inconfundível da força criadora do universo, tenha se
posicionado com sua tela, tintas, e pinceis, em algum fim de tarde e, copiando
a natureza, tenha se tornado ele mesmo criador.
Nenhum
outro pintor soube captar tão belamente a energia e a luz da estrela central de
nosso sistema solar como o fez Vincent Van Gogh. Sem ele, o sol, não haveria
vida nessa via de expiação a que os humanos resolveram chamar de Terra.
Sem
dúvida, derramar os olhos na imensidão daquela beleza de quadro pintado no
horizonte, ajudava a aliviar o sofrimento da gente negra que dividia aquele
espaço com os senhores de engenho, com seus filhos e filhas e demais
familiares, e também com os feitores, sempre dispostos a castigar os negros à
primeira ordem dos patrões. Para merecer esses castigos não era preciso grandes
crimes: às vezes um copo de cristal quebrado bastava para que os escravos
sentissem no corpo o peso das chibatas.
Ali
naquele pedaço de chão encravado naquele pé de serra, em Belo Jardim, agreste
pernambucano, a estrela central do funcionamento de toda aquela estrutura era a
casa grande senhorial. Diferentemente do astro rei, se algum dia a estrela
central daquele sistema opressor viesse a faltar, para os negros escravos
sobraria ainda uma longa vida de liberdade a ser vivida e aproveitada com
intensidade.
A
casa grande do Engenho Novo, como quase todas as casas grandes daquela época,
era construída na parte mais elevada do terreno. Isso porque a preocupação
maior, herdada dos primeiros tempos da colônia, era mais com a segurança que
com o conforto, se bem que não possa dizer que a casa grande daquele engenho
fosse feia ou desconfortável, muito pelo contrário, a arquitetura da construção
mais parecia com um castelo, internamente decorado com finas louças trazidas de
viagens que os senhores de engenho faziam frequentemente ao exterior.
Nas
proximidades da fortaleza ficavam; a senzala, ampla habitação coletiva, sem
divisórias, que abrigavam escravos. Essa habitação sim, feita de madeira, não
contava com conforto nenhum. Os escravos dormiam em esteiras, ou até mesmo no
chão. Nela não havia banheiro ou coisa parecida. Quando os escravos queriam
fazer suas necessidades fisiológicas, a mata era vastíssima para isso. Quando
era necessário banhar-se, as águas dos rios e cachoeiras eram limpas e claras.
Na
frente da senzala, e debaixo de um frondoso pé de juá, ficava o terror de todos
os negros e negras que derramavam seu suor do nascer ao pôr do sol para o
enriquecimento do patrão: o pelourinho, que nada mais era que um tronco onde os
escravos eram amarrados e sofriam dolorosos castigos físicos. Muito sangue já
havia escorrido naquele tronco, debaixo daquele juazeiro. Muitas vidas negras
também já tinham sido tombadas naquele temido pedação de chão.
Nas
redondezas da casa grande ficavam ainda o engenho onde a cana era transformada
em açúcar, a casa de farinha, onde a mandioca era transformada em farinha, o
paiol, e as instalações que funcionavam como uma espécie de escritório que
geria toda aquela estrutura.
O
banco onde era guardada a fortuna arrecadada era os cofres que se situavam
dentro da casa grande, onde também eram guardadas as joias de propriedade da
família senhorial. Bem próximo à casa
grande e a senzala ficava também a capela, onde os brancos faziam suas orações
aos santos, e os negros, quando podiam entrar lá, pelo sincretismo faziam aos
seus orixás, pedidos ardentes por liberdade.
Os
ágeis pincéis do criador do universo já tinham feito sumir o amarelo dourado e,
no lugar dele, pinçava alguns tons em um cinza forte e mais escuro. Era o manto
da noite que caia suavemente sobre o Engenho Novo.
O
sino da capelinha bateu anunciando às seis horas, chamando os devotos e devotas
para a reza do terço. Dentro da sala da casa grande, as mãos delicadas da
sinhazinha abriram uma partitura, se debruçaram sobre as teclas do piano, e
começaram a entoar com perfeição e sentimento, a bela melodia escrita por
Charles Gounod para a Ave Maria. A melodia, executada com tanta perfeição,
pareceu ganhar vida e saindo pelas amplas portas e janelas, foi-se a correr
pelos campos e ao pé da serra, divinizando ainda mais uma hora tão bela.
Enquanto
na sala da casa uma canção ecoou, na mesma hora sexta, debaixo do pé de jucá, a
mão do feitor desceu com o chicote na pele de uma negra, e um grito de dor
ecoou dentro da recém-chegada noite.
Chegara
a vez de a negra Maria sofrer os castigos corporais. Dos castigos corporais se
diz por que das torturas psicológicas ela já sofria faz tempo, principalmente,
há três anos, depois que chegara naquele engenho.
Lembrava-se
de quando subira a ladeira em direção à senzala. Enquanto subia ficava a pensar
no que a aguardava naquelas paragens. Já havia sido alertada por outros
escravos, durante as negociações de sua compra no mercado de escravos, de que,
na Fazenda Engenho Novo ficava um dos senhores de engenho mais cruéis da
região. Não apenas ele, mas também a sinhá, esposa dele, era muito cruel e
intolerante. Ao lembrar-se das coisas que os companheiros de cativeiro lhe
haviam falado daquele lugar, sentiu um arrepio a lhe percorrer o corpo... E
entregou-se nas mãos dos seus orixás e da sua homônima, a virgem Maria.
Apesar
de jovem, tinha ela 22 dois anos de idade, em suas andanças pelas terras
brasileiras já tinha ouvido muita coisa, nas senzalas, e nas salas da casa
grande, pois, por diversas vezes, já trabalhara como escrava doméstica
acompanhando as sinhazinhas em pequenos afazeres. Uma dessas coisas que ouvira
foi de que os movimentos abolicionistas já estavam bem avançados, tendo inclusive
diversos senhores de engenho já concedido liberdade a seus escravos. Em seu
último trabalho em casa de um senhor de engenho no Rio de Janeiro, ela estava a
limpar os cristais da cristaleira da sinhá, quando, discretamente, ouviu a
conversa do patrão com um figurão bem próximo aos monarcas, de que a escravidão
estava com os dias contados e que logo seria abolida em solo brasileiro.
Maria
não tinha ido à escola, mas tivera a sorte de encontrar uma patroa que lhe
ajudara a dar os primeiros passos no mundo das letras. Aprenderam um pouco, o
suficiente para observar com mais atenção o mundo que a cercava e dele tirar
suas conclusões.
Ao
subir aquela leve ladeira que levava ao complexo casa-grande e senzala, pensou
em como ainda havia gente de pensamento tão atrasado pelos recantos do Brasil,
e ela tivera a infelicidade de cair nas mãos de um desses.
Enfim,
começara a trabalhar na casa grande como escrava doméstica, auxiliando a sinhá
e a sinhazinha em afazeres domésticos. Os filhos do patrão, um estava estudando
na Europa e outro no Rio de Janeiro. Nesses três anos em que ela estivera
trabalhando ali, só tivera oportunidade de vê-los duas vezes quando eles vieram
em férias.
Tudo
corria tranquilo para ela. Fazia o seu trabalho como houvera feito normalmente
em outras casas senhoriais por onde passara. Porém, sua beleza não passou
despercebida ante os olhos do patrão. Começou a sofrer investidas constantes.
Na frente da patroa não fazia nada. Comportava-se. Porém, bastava que essa
virasse as costas para que ele começasse a passar a mão pelos seus seios, suas
coxas, e tocasse suas partes íntimas.
Maria
sempre se esquivara e até mesmo ameaçara contar para a patroa os intentos do
patrão, mas essa era uma mulher vingativa. A escrava tinha sabido conquistar a
patroa, após observar-lhe os pontos fracos. Sabia que o ciúme que ela sentia do
marido era do tamanho dos montes que circundavam o engenho e, por isso fugia
das investidas do sinhô como o diabo foge da cruz.
Mas
o homem era mesmo perverso. Certa vez, a sinhá foi ao Rio de Janeiro com suas
filhas assistir ao espetáculo de uma famosa cantora parisiense que viera ao
Brasil para um concerto no Teatro João Caetano. Elas estavam empolgadas com a
vinda da cantora de quem gostavam bastante.
O
sinhô logo pôs uma série de obstáculos para que Maria não as acompanhasse.
Mentiu que estava doente e que iria precisar dos cuidados dela. Como ele era
bom em convencer as pessoas, mesmo quando estava com más intenções, as três
logo acreditaram nele.
Naqueles
dias em que a patroa e filhas estiveram na capital do Brasil, as investidas do
patrão tornaram-se ainda mais fortes. A escrava sempre dava um jeito de fugir
dele, aproximando-se de outras pessoas, ou inventando outros artifícios.
Uma
noite, porém, não teve como fugir. Ele colocou algo dentro de um chá de erva
doce que ela frequentemente tomava antes de recolher-se à senzala.
Completamente dopada e sem o uso de suas faculdades. Ele a levou para o quarto
na casa grande e ali passou à noite com ela. Depois disso, a patroa retornou e
Maria ficou em segurança pois junto da esposa e da filha, ele continuaria a
ficar apenas nas ameaças.
Um
mês depois, o pavor tomou conta de Maria. Ela descobriu que estava grávida e só
podia ter sido naquela noite com o patrão. Mas ficou em silêncio sobre essa
descoberta, pois se falasse alguma coisa, era bem capaz de a patroa pedir para
o feitor sumir com o corpo dela em algum lugar escondido na mata.
Certa
feita, o patrão aproximou-se dela com segundas intenções e ela, perdendo a
cabeça, lhe deu um tapa no rosto. Foi o suficiente para o furor dele contra a
escrava crescer. Esperou o momento certo, e, quando ela quebrou,
acidentalmente, a taça de vinho preferida dele, e que havia sido trazido de
Portugal, ele impiedosamente, mandou castiga-la no tronco.
E
ali, estava ela, com o corpo ensanguentando. A Ave Maria que vinha do piano da
sala da casa grande trazia-lhe certo alivio. Amarrada aquele tronco ela sonhava
com a liberdade. Pensava nas palavras do fidalgo no Rio de Janeiro de que a
escravidão logo acabaria. No desespero, pensava em mil maneiras de fugir para o
quilombo. Agora tinha mais motivos ainda para pensar nisso. Ia ser mãe. Tinha
de sair dali antes que a barriga começasse a crescer. Isso era urgente, a fuga.
Era um filho que fora concebido de forma indesejada, e de um homem de quem não
gostava, mas era seu filho, estava na sua barriga e ela o estava gerando. Tinha
de amá-lo e cobri-lo de carinhos. Já tinha visto outras escravas fazerem
aborto, mas isso além de arriscado, ia contra seus princípios.
Um
mês depois dessa noite horrorosa passada no tronco. Ela finalmente conseguiu
fugir. O plano foi simples. Um dia em que o feitor relaxou na vigilância, ela
inventou de ir ao riacho lavar algumas roupas da patroa, e de lá, desapareceu
na mata para nunca mais voltar. Foi bem acolhida entre os irmãos quilombolas.
Seis meses depois dava à luz a um menino e lhe pôs o nome de Emanuel.
E,
no quilombo ensinou ao menino que um homem deve fazer da liberdade o seu farol,
o seu Norte na vida, e que de gaiolas, nem os pássaros gostam. Passou ao filho
o que sabia do mundo das letras para que ele não crescesse na ignorância delas
e que soubesse conversar até com os doutores que dele se aproximassem.
Junto
de Emanuel, Maria experimentou o amor sem limites, a gratuidade do amor. Era
mãe, e mãe não mede esforços nem sacrifícios quando se trata de cuidar e
proteger o filho.
Poucos
anos mais tarde, se cumpriu o que o fidalgo fluminense havia profetizado em
casa de um antigo patrão dela. Era 13 de maio de 1888, a escravidão no Brasil
havia sido abolida. Houve festa no quilombo e por todo o Brasil o tambor tocou
em comemoração a esse fato.
Um
sorriso iluminou o lindo rosto de Maria, ao olhar o filho correndo para lá e
para cá, junto com as outras crianças negras do quilombo, seus companheiros de
brincadeiras. Eles cresceriam num país de homens livres. Não sabia ela, que por
muito tempo ainda o negro ainda carregaria o estigma do preconceito e da
discriminação.
Quem
sabe algum espírito santo ainda venha e pouse sobre os homens e liberte os
preconceituosos de seus próprios preconceitos, assim como os negros foram
libertos da escravidão.
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