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Última viagem

Posted by Cottidianos on 13:28

Quinta-feira, 16 de junho

                                          

Saudades do Amazonas

 

Desde que te deixei, ó terra minha,

Jamais pairou em mim consolação,

Porque, se eu longe tinha o coração,

Perto de ti minh’alma se mantinha.

 

Em êxtase minh’alma se avizinha

De ti, todos os dias, com emoção,

Vivendo apenas dentro da ilusão

De voltar, tal qual vive quando vinha.

 

Assim, minh’alma vive amargurada

Sem que eu a veja em ti bem restaurada

Das comoções que teve em outras zonas,

 

Mas para torná-las em felicidade,

É preciso matar toda a saudade,

Fazendo-me voltar ao Amazonas!


                                             Petrarca Maranhão

 Começo a postagem de hoje com trecho do poema, Saudades do Amazonas, do escritor Petrarca Maranhão (1913-1985). Nascido em Manaus, mudou-se para o Rio de Janeiro ainda na sua Juventude. Porém, os anjos arrancados do paraíso nunca o esquecem. E sempre mantém viva em sua mente, em seu coração, o lugar de onde vieram, e para onde um dia, voltarão. A saudade da terra natal e o desejo de regressar sempre estiveram presente na obra do autor, como testemunha o poema citado.

Permitam-me os caros leitores e leitoras começar o texto de hoje com poesia para falar de morte. Porém, tudo tem seu motivo e nenhuma palavra é jogada por acaso, todas elas têm uma função no texto, o complementam, quando não passam a ser elas o próprio texto.

Enfim, a notícia que já esperávamos, mas não queríamos receber, restou confirmada, oficialmente, nesta quarta-feira, 15. Ontem, por volta das 8 horas da noite, horário local no Amazonas — 10 horas da noite horário de Brasília — os agentes da Polícia Federal chegaram ao porto da cidade de Atalaia do Norte, trazendo os restos mortais que podem ser do indigenista Bruno Pereira, e do jornalista britânico, Dom Phillips.

Os restos mortais foram encaminhados, de helicóptero, para Brasília, Distrito Federal, onde deverão passar por perícia. Os dois estavam desaparecidos desde o domingo, 5, no Vale de Javari, no coração da selva amazônica.

Em entrevista coletiva no início da noite desta quarta-feira, 15, a Polícia Federal revelou detalhes do crime. O superintendente da PF no Amazonas, o delegado Eduardo Alexandre Fontes, disse que Amarildo da Costa Oliveira, que estava preso por suspeita no envolvimento do crime, confessou participação no crime, e se dispôs a ir com a polícia até o local da ocorrência e onde estavam os corpos.

Pela manhã, a polícia o havia levado até o local onde os fatos aconteceram e fez uma reconstituição dos mesmos. Do que se sabe até agora, podemos dizer o seguinte sobre a dinâmica do crime.

No domingo pela manhã, Bruno e Dom foram, sozinhos, até a comunidade de São Rafael, onde conversariam com um líder comunitário. Era a última visita que fariam como parte do trabalho que desenvolviam na região desde a sexta-feira, 3 de junho.

Os dois chegaram à comunidade logo cedo da manhã de domingo. Não encontraram o líder comunitário em casa, mas conversaram com a mulher dele. Depois, seguiram de barco no que seria o último trecho da viagem de cerca de duas horas até a cidade de Atalaia do Norte.

Os bandidos, de alguma forma, souberam que indigenista e jornalista, tendo dispensado a equipe de indígenas da Unijava que os acompanhava e atuava como segurança dos dois, havia sido dispensada, e que eles seguiam viagem, sozinhos.

Então passaram a persegui-los pelo rio Itaqui. Conseguiram alcançá-los ainda nas proximidades da comunidade de São Rafael. Houve perseguição em alta velocidade nas águas do rio.

Uma testemunha contou à polícia que viu quando Bruno e Dom passaram de barco. Diz também que, poucos minutos depois, viu quando Pelado — como Amarildo é conhecido na região — passou por eles, acompanhado de mais quatro pessoas que ainda não foram identificadas, indo na mesma direção por onde seguiam indigenista jornalista.

Outra testemunha afirmou que, pouco depois que Bruno e Dom deixaram a comunidade de São Rafael, viu Pelado carregar a arma e preparar um cinto de munição e cartuchos.

Houve tiroteio no rio. Mas o delegado não soube precisar o que provocou a morte dos dois. Se ela foi provocada por disparos de armas de fogo, ou não. Isso apenas a perícia vai definir.

Os assassinos colocaram sacos de terra dentro do barco onde viajava a dupla para que ele afundasse propositalmente. Primeiro eles tiraram o motor do barco, depois o afundaram.

Apesar de a PF não ter especificado como os dois morreram — comportamento compreensível, pois a PF ainda está na fase de investigação, perícia e todas essas coisas — duas fontes, uma da PF e um indígena, disseram, de forma não oficial à equipe de reportagem da Amazônia Real, que Bruno e Dom foram mortos à queima, depois tiveram seus corpos esquartejados e incendiados.

Essas fontes ouvidas pela Amazônia Real disseram ainda que os dois foram enterrados em cova rasa, próximo a uma árvore, em área de mata densa, nas proximidades da Terra Indígena Vale do Javari. O acesso a essa área se dá por um lago e depois por um igarapé. Igarapé é um riacho que nasce na mata e desagua no rio. Os corpos foram encontrados a três quilômetros de onde foram encontrados mochilas, roupas, notebook, e documentos dos dois.

De fato, o superintendente da PF no Amazona, disse na coletiva de imprensa de ontem que o local onde os corpos foram encontrados é de difícil acesso. “Nós não teríamos condições de chegar a esse local de forma tão rápida nesse local, se não houvesse a confissão. Uma hora e quarenta de voadeira, de embarcação, saindo de Atalaia do Norte, e depois no local do evento, e depois mais três quilômetros mata adentro, com a embarcação entrado em local de difícil acesso. Foram vinte e cinco minutos ainda de embarcação”, disse o jornalista em seu comentário para o Globo News em Pauta.

A Justiça do Amazonas também determinou a prisão temporária por trinta dias, do irmão de Amarildo, Oseney da Costa de Oliveira, por suspeita de participação no crime.

Um detalhe da entrevista coletiva dada pela Polícia Federal na noite de ontem, não pode passar em branco, e foi lembrada pelo jornalista da Globo News, André Trigueiro. André elogia o trabalho da polícia, mas ressalta: “O desprezo histórico do Brasil oficial pelos indígenas se materializou nessa entrevista coletiva. É impressionante que não houvesse nenhum indígena sentado à mesa. E na primeira rodada de manifestações espontâneas de todas as autoridades presentes, nenhuma menção aos indígenas foi feita. Por que eu digo isso? Porque sem a preciosa, a estratégica colaboração dos indígenas não seria possível acessar o local onde os corpos foram achados, em dez dias. Toda aquela região, vasculhada pelas autoridades representadas nessa entrevista coletiva, foi objeto de uma atuação sistemática dos indígenas, guiando essas autoridades. Esse desprezo histórico pelos indígenas, que o Brasil oficial desde a chegada dos portugueses reproduz, e chegamos ao século XXI, era contra o que Bruno Pereira lutava... Porque isso é tão grave que a primeira pergunta feita na coletiva por uma correspondente estrangeira foi justamente: “Cadê os indígenas?”, disse o jornalista em seu comentário para o GloboNews em Pauta.

A mulher de Dom Phillips, Alessandra Sampaio, divulgou uma carta à imprensa na noite desta quarta-feira, na qual diz: “Hoje se inicia também nossa jornada em busca por justiça. Espero que as investigações esgotem todas as possibilidades e tragam respostas definitivas, com todos os desdobramentos pertinentes, o mais rapidamente possível. Só teremos paz quando as medidas necessárias forem tomadas para que tragédias como esta não se repitam jamais”, disse ela.

E assim, achamos de forma trágica, a resposta para a pergunta que nós nos fazíamos desde o dia 05 deste mês: Onde estão Bruno Pereira e Dom Phillips?  Jornalista e indigenista foram mortos e enterrados na mesma floresta que tentavam salvar, e em meio os povos que buscavam defender. Ironia do destino, Dom Phillips estava ali justamente como parte do trabalho para o livro que estava escrevendo e cujo título provisório era “Como Salvar a Amazônia”.

E ainda vem o nosso presidente, Jair Bolsonaro, que nenhuma empatia tem para com a dor e o sofrimento humanos — já havia mostrado isso durante a pandemia, e mostra agora — dizer que os dois estavam ali para uma aventura, e que os dois eram malvistos na região pelo trabalho que faziam. Sim, eles eram muito malvistos mesmo, mas não pelos povos da região, mas sim, por bandidos interessados apenas em lucros fáceis, que devastam a floresta, e oprimem e ameaçam o povo indígena, e eram malvistos também pelo próprio governo que apoia essa gente.

Que o diga o ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que disse, claramente, em reunião ministerial realizada em 22 de maio de 2020, que era preciso aproveitar o momento em que os veículos de comunicação estavam envolvidos com a Covid, para o governo “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”.

As palavras do ex-ministro se confirmaram em atos em sua gestão ao colocar o ministério do Meio Ambiente ao lado de madeireiros, pescadores, e garimpeiros ilegais, e perseguir funcionários da Polícia Federal, da Funai, e do Ibama que tentavam fazer aquilo que é justo e correto: defender a floresta e seus povos. O mais grave é que coisa de “passar a boiada” não é apenas uma fala de Ricardo Salles, mas, sim, uma política de governo.


Naquela manhã de domingo, dia 05, quando Bruno e Pereira e Dom Phillips deixaram a comunidade de São Rafael em direção a cidade de Atalaia do Norte, pensavam estar fazendo o último trecho daquele percurso que faziam pela região desde a sexta-feira, 3, quando por lá chegaram.

Na verdade, estavam percorrendo o último trecho de suas vidas terrestres. Agora, não estão mais entre nós. Encontram-se em algum lugar no plano espiritual. E nesse plano superior serão cuidados, como os doentes são curados de suas feridas nos hospitais terrenos.

Afinal, foram vítimas de crime brutal. Muita dor e sofrimento experimentaram em seus últimos momentos terrenos, e a alma leva essas impressões com ela. Depois de curadas suas feridas, voltarão para ajudar o povo e a terra que tanto amaram em vida.

É como diz o poema, Saudades do Amazonas, que abre esse texto “Porque, se eu longe tinha o coração, perto de ti minh’alma se mantinha”. E como a alma também sente saudades “É preciso matar toda a saudade, fazendo-me voltar ao Amazonas!

Sigam em paz, bravos guerreiros. Morreram lutando por causas nobres. Verdadeiros discípulos modernos de Cristo e do deus Tupã, morreram doando suas vidas para que outros tivessem vidas.

Muita luz e paz em vosso caminho espiritual.

Nós por aqui ficamos ansiando por justiça, não apenas por vocês, mas por todos que deram suas vidas por um ideal nobre e transformador, por todos que morreram tentando fazer deste mundo um lugar melhor.


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