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Uma pedra no meio do caminho

Posted by Cottidianos on 14:12

Domingo, 31 de maio

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra

Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra

(No meio do caminho – Carlos Drummond de Andrade)

Charge do Amarildo, publicado na Gazeta (ES), em 12-02-2014


É impressionante, para não dizer alarmante, o modo como o Brasil vem enfrentando a crise provocada pelo coronavírus.

Neste sábado, 30, as manchetes dos jornais deram destaque ao fato de que o Brasil ultrapassou a França no número de mortes por Covid-19. Já são 28.834 vidas que foram tombadas pela doença em território brasileiro, enquanto a França registra, até o momento, 28.774 mortes. E não demorará para que assumamos a segunda posição e, quem sabe, ultrapassar os Estados Unidos, que é atualmente quem lidera o macabro ranking no número de mortes por Covid-19.
Nas primeiras posições dessa tenebrosa tabela estão; Estados Unidos (103.685), Reino Unido (38.458), Itália (33.340), e o Brasil, em quarto lugar, conforme foi relatado acima. Com o ritmo acelerado com que a doença avança pelo país, ultrapassar Reino Unido e Itália é apenas uma questão de dias para o Brasil.
Também neste sábado foram registrados mais 33.274 novos casos da doença em 24 horas, elevando o total de infectados para 498.440. No dia 22 de maio ocupamos a segunda posição na tabela que mostra os países com mais casos confirmados de coronavírus, ultrapassando Espanha, Reino Unido e Rússia. Atrás apenas dos Estados Unidos. Os casos de pessoas que se recuperaram da doença somam 200.892. Os casos que estão em acompanhamento são em número de 268.714.
A atual situação do Brasil é tão preocupante que levaram os Estados Unidos a, no dia 24 deste mês, proibir a entrada de estrangeiros vindos do Brasil em seu território.
Esse quadro caótico ao qual chegou o país se deveu, em grande parte as desastrosas políticas para o combate à doença implementadas pelo governo. Que aliás, pode ser chamada de política de não combate ao problema. O Ministério da Saúde bem que tentou através dos ministros Luiz Henrique Mandetta, e Nelson Teich, que eram médicos e tinham uma dimensão exata do que afirmava a ciência e seguiram uma política de adotar os padrões adotados pela Organização Mundial da Saúde, inclusive na recomendação quando ao isolamento social.
Na segunda-feira, 25, Wanderson Kleber de Oliveira, enfermeiro epidemiologista, que ocupava o cargo de Secretário Nacional de Vigilância em Saúde, deixou o cargo. Wanderson fazia parte do time montado por Mandetta para combater o Covid-19. Em sua saída ele escreveu uma carta aberta à população brasileira. Na carta ele pontua a atuação do Ministério da Saúde no combate à doença e o governo Bolsonaro.
Wanderson diz que o país estava, logo no início da pandemia, à frente de países da Europa, o que nos colocava em vantagem na questão da ampliação da capacidade laboratorial, de leitos hospitalares, e na aquisição de equipamentos de proteção individual para os profissionais da saúde, e de respiradores.
Mas, diz ele: “No entanto, como dizia o poeta e conterrâneo Carlos Drummond de Andrade, no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho”. Ao falar da atuação do ex-ministro Nelson Reich, o ex-secretário usa a mesma metáfora. Ele diz que Teich poderia ter feito uma gestão bem sucedida à frente da pasta, porém, “lamentavelmente não teve tempo de mostrar seu trabalho, pois novamente tinha uma pedra no meio do caminho”.
A referência à famosa poesia do grande poeta, Carlos Drummond de Andrade, também foi usada pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta em meio às divergências com o presidente Jair Bolsonaro em relação a questão de cumprir ou não o isolamento social.
Em fins de março, Mandetta disse ao presidente, “Se o sr. for para metrô ou ônibus em São Paulo (como chegou a dizer em entrevista), vou ser obrigado a criticá-lo”. O presidente rebateu dizendo: “E eu vou ter que te demitir”. Por uma questão de logística, Bolsonaro não pode ir à São Paulo, o que não o impediu de provocar o ministro indo a padarias e mercadinhos de Brasília, provocando aglomerações. Na verdade, essa atitude era uma armadilha para provocar a queda do ministro.
Mandetta, porém, não caiu na armadilha, e do alto de seu silêncio diante da atitude do presidente, pediu calma e paciência a sua equipe, enviando a eles o famoso poema No meio do caminho, que é uma obra prima de Carlos Drummond de Andrade. Poema publicado pela primeira vez em 1928, no número 3 da revista Antropofagia, dirigida por Oswaldo de Andrade.
E essa pedra no meio do caminho, como todos sabem, tem nome e se chama Jair Bolsonaro. O presidente nega a crise, impõe que seja administrada cloroquina à população, remédio sem nenhuma comprovação cientifica no combate ao Covid-19, critica uma das principais medidas recomendadas pela OMS no combate à pandemia que é o isolamento social, demite ministros no meio da pandemia, nomeia pessoas sem habilidade técnica na área da saúde para o Ministério da Saúde, briga com governadores, ignora a crise, e se entrega largamente aos seus sonhos e planos egoístas de poder, e além de tudo isso, ainda encontra tempo, para inflamar, através das redes sociais, ou pessoalmente, uma militância de extrema direita radical que se torna mais cada vez mais irracional a ponto de atacar profissionais de imprensa, da saúde, da Justiça, e quem mais se coloque em posição contrária aos delírios do presidente.
Com isso, a boa imagem que o Brasil tinha junto à comunidade internacional vai se desfazendo como se desfazem os castelos de areia atingidos docemente pelas ondas do bravio mar. Este blog tem ouvidos de jornalistas, e até de amigos que estão no exterior que a imagem do Brasil fora do Brasil é péssima.
Esta semana, o comentarista da CBN Guga Chacra, que mora nos Estados Unidos, e de lá comenta fatos da sociedade norte-americana e do Brasil, disse, em uma das suas analises, que está nos Estados Unidos há bastante tempo, e que nunca viu a imagem do Brasil tomar uma forma tão negativa entre os norte-americanos.
Essas atitudes negacionistas do presidente acabam, de certa forma, consciente, ou inconscientemente, se refletindo na sua militância que promove manifestações contra o isolamento social, e também em parte da sociedade brasileira.
Alie-se a tudo isso, o fato de grande parte da população prefere acreditar nas fake news que circulam a todo vapor nas redes sociais em relação a doença, e a medidas adotas pelos governos estaduais e municipais nessa luta.
O governo parece também querer “tapar o sol com a peneira” quando fala dos números de mortes pelo Covid-19. Nos últimos dias, o Ministério da Saúde, passou a ignorar o número de mortos pela doença.
Na terça-feira, 19, quando o país ultrapassou pela primeira vez a marca dos mil mortos, o Ministério da Saúde ignorou os números e publicou nas redes sociais uma tabela chamada de “Placar da Vida”. Naquele dia, a tabela registrava que havia 106, 7 mil brasileiros curados da doença e 146.863 em recuperação. Na imagem era usada a hashtag #NinguémFicaPraTrás. Não havia referências na postagem ao número de mortos pela doença, nem ao fato de que o Brasil havia ultrapassado naquele dia a marca de 1000 mortes em 24 horas.
E assim tem sido desde o dia 27 de abril quando o tal “Placar da Vida”, foi criado pela Secretária de Comunicação Social (Secom), a pedido do ministro da Secretária de Governo, Luiz Eduardo Ramos. A estratégia é divulgar apenas dados positivos em relação a doença. O tal placar tem sido divulgado nas redes sociais, diariamente, desde então.
Ainda em abril, Ramos havia criticado a cobertura que a imprensa faz da Covid-19. “No jornal da manhã é caixão, corpo; na hora do almoço, é caixão novamente. No jornal da noite é caixão, corpo e número de mortos. Eu pergunto a todos: como é que você acha que uma senhora de idade, uma pessoa humilde ou que sofre de outra enfermidade se sente com essa maciça divulgação desses fatos negativos. Não está ajudando”.
Essa é mais uma atitude negacionista do governo em relação ao Sars-Cov-2.
Marcos Boulos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, falando a BBC News Brasil, criticou o “Placar da Vida”: “É um vírus que mata, normalmente, menos de 5% das pessoas que foram infectadas e tiveram sintomas. Então é óbvio que mais de 95% vão se recuperar. Enfatizar os números de recuperados não muda nada neste momento. É preciso ser realista. Não é correto tentar minimizar a gravidade da doença”.
Na verdade, criticar a cobertura que a imprensa faz, e esconder o número de mortos, é apenas uma tentativa de mascarar a própria incompetência em resolver os problemas ou, ao menos, de encontrar soluções para amenizá-lo.
É como o indivíduo alienado que prefere falar de borboletas na janela quando há um monstro terrível e ameaçador no jardim. O sujeito pode até estar no conforto de sua sala fazendo considerações sobre quão belas são as borboletas, que elas parecem ágeis dançarinas no tablado da flor, destacar a beleza de suas cores, usar linguagem poética para falar delas, e tudo o mais. Entretanto, isso não vai fazer com que o monstro vá embora do jardim. Até porque monstros detestem poesia, cultura e arte. Em vez disso eles preferem tragédia, sangue, e sofrimento. No primeiro momento em que o alienado falando de borboletas na janela puser os pés no jardim, o monstro o devora. Afinal, monstros não costumam ter piedade de ninguém.
Obviamente, caros leitores e leitoras, toda essa atitude negacionista vai numa direção do desprezo pela vida humana em detrimento do grande capital. É preciso reabrir as atividades econômicas. Obviamente é preciso. Porém, se tivesse havido, logo de início, por parte do governo federal um empenho e compromisso na condução da crise, o Brasil não estaria atravessando a situação caótica pela qual atravessa hoje.
As atitudes e atos estão sendo feitas de modo desconexo e sem sentido desde o início da crise. E continuam sem direção em meio a pandemia até agora. Este blog não quer fazer aqui previsões catastróficas, nem tem essa pretensão. Muito menos a de enveredar pelo caminhos do pessimismo. É apenas uma questão de olhar em volta de si e vê os sinais que estão aparecendo ao longo do caminho. Quem vê o céu carregado e sai de casa sem capa e guarda-chuva se arrisca a tomar um banho daqueles.
É pensando deste modo que este blog arrisca a dizer que as coisas no Brasil ainda se tornarão bem mais graves em relação ao coronavirus. Enquanto outros países que souberam administrar bem a crise e estão chegando a portos seguros, inclusive reabrindo a economia, nós ainda estaremos na forte tempestade em alto mar, vendo muitos marinheiros serem tragados pelo mar bravio.
Voltamos então ao discurso negacionista. É uma estratégia. Mas que estratégia? Quem explica isso é o filosofo Pablo Ortega, professor da USP, falando a BBC News Brasil: “É uma estratégia que faz parte de uma campanha de desinformações. Essa campanha dos bolsonaristas também costuma argumentar que os governadores estão aumentando números de mortos, que os hospitais estão vazios e que a cloroquina é eficaz (mesmo sem comprovação científica)”.
A estratégia óbvia é dizer que está havendo superdimensionamento com relação ao coronavírus para que haja uma reabertura econômica, que, se fosse de acordo com os desejos do presidente, nem seria gradual, mas total. Aliás, se fosse pela vontade dele, nem teria havido isolamento social nenhum.
E, de fato, vários estados estão promovendo reaberturas econômicas, mesmo com os números em relação a doença estarem totalmente fora de controle no país. Clubes de futebol também defendem a volta das atividades esportivas.
Ah, mas os países europeus estão promovendo a reabertura da economia e a volta as atividades esportivas, diria alguém. É, mas a Europa está vivendo um outro momento em relação ao coronvaírus. Eles estão saindo do olho do furacão, com todo cuidado é verdade. Nós ainda estamos no olho desse furacão.
Em tudo isso ainda há o temor de que as pessoas ao verem os comércios abertos tendam a pensar que as coisas estão normais, que o perigo passou. Não haverá pelo menos, não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro, uma volta à normalidade, tal qual eram as coisas antes do coronavírus. Enquanto não se encontra um remédio eficaz contra o vírus, é preciso uma atitude de muita prudência, cuidado, e muita responsabilidade por parte de todos, para consigo mesmo e para com a coletividade.
É tudo uma questão complicada. Vamos ver como vai se desenrolar a questão do coronavírus no país nos próximos dias e meses.
Em meio a toda essa inquietação toda em relação a doença, os brasileiros ainda tem que ver essa questão ser deixada em segundo plano nas discussões por causas das crises criadas pelo governo, das investigações no inquérito das fakes news que avançam e podem chegar a aliados e apoiadores do presidente e de seus familiares, bem como com as ameaças à democracia feitas por Bolsonaro e seus filhos. Há também a investigação sobre a interferência do presidente na Polícia Federal. Há também as tentativas dele de pressionar as instituições e de tentar comprar com cargo no STF o procurador-geral da república Augusto Aras. Enfim, são tantas coisas desagradáveis... O que menos se ouve falar no governo é sobre como sair dessa arapuca armada pelo inimigo chamado coronavírus.
Como veem, caros leitores e leitoras, o mar não está para peixe no Brasil.

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