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Bruxas, cadeirões e hipocrisia

Posted by Cottidianos on 14:12

Domingo, 06 de outubro


“As pilhas de lenhas e gravetos já estavam acesas e a multidão inquieta, aguardava o início do ritual que conhecia tão bem. Afinal, execuções eram espetáculos imperdíveis, que atraiam a atenção de pessoas vindas de vários cantos. Em meio ao ruído abafado dos comentários sobre os horrores que havia cometido, surgiu enfim a condenada. A turba, que já estava agitada, aproveitou para liberar a tensão reprimida: objetos, palavras de ódio, risos e piadas partiam de todas as direções contra a terrível criatura. Não houve muitas delongas. A sentença foi lida rapidamente, o carrasco, num gesto piedoso, estrangulou a condenada para que não enfrentasse as chamas viva e, em poucos minutos, seu corpo ardia, diante da aclamação selvagem da assistência... Nuas, montadas em vassouras, aterrorizando cidades, aldeias e castelos, no imaginário popular e religioso da época, as bruxas estavam por toda parte, semeando o pavor... De 1450 a 1750, poucas pessoas ousariam contradizer essa doutrina, repetida em tom de ameaça nos púlpitos dos pregadores católicos, assim como nos sermões protestantes depois da Reforma religiosa de Martinho Lutero no século XVI...”
O trecho citado foi extraído da reportagem, Inquisição, Idade Moderna e as bruxas: as mulheres em chamas, publicada na revista Superinteressante, em 31 de janeiro de 1993.
Essas cenas repugnantes e pavorosas ocorreram por toda a Europa por mais de 300 anos e, pasmem os leitores e leitoras desse blog, essas barbaridades eram cometidas em nome da moral, da fé e dos bons costumes.
Essa caça às bruxas começa a ocorrer de forma sútil, mas já bastante perceptiva no Brasil dos dias de hoje. Se antes, era a Igreja que promovia essa caça, hoje ela é executada pelo governo de Jair Bolsonaro. Bolsonaro manda, os seus funcionários, que na verdade são funcionários do Estado, obedecem.
Talvez nunca tenha se visto um aparelhamento ideológico do Estado tão bem montado e tão bem executado. Nem a criticada esquerda, acusada, justamente, de aparelhamento ideológico do Estado, foi tão bem-sucedida em suas intenções.
Na verdade, o que se tem agora é um aparelhamento ideológico do Estado sendo praticado pela direita e isso, em qualquer dos casos não é bom. Aparelhar o Estado em qualquer dos casos é um grande erro, um grande engano, e uma grande ignorância, pois a palavra Estado tem um significado amplo da totalidade e não apenas de uma pequena parte.
Na verdade o que um governo faz ao praticar tal ignorância é destituir o Estado do seu papel de amparar e respeitar a todos, pois passa a privilegiar apenas os que pensa como ele e os grupos que o apoiaram durante a campanha eleitoral, deixando de lado aqueles que pensam diferente e tem uma visão de mundo e que não se situam naquela atitude sectária. É o tal do “Venha a nós e o vosso reino, nada”.
Um artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo, neste domingo (06) intitulado, Caixa às bruxas, chama a atenção para essa questão. Na verdade, o artigo faz referência a reportagem publicada pelo próprio jornal no último dia 04 de outubro na qual mostra o sistema de censura que está sendo implantada na Caixa Econômica Federal em relação a projetos artísticos e culturais a serem apresentados em seus espaços físicos em todo o país.
Novas regras implementadas neste ano exigem que detalhes do posicionamento político dos artistas, o comportamento deles nas redes sociais e outros pontos polêmicos sobre as obras constem de relatórios internos avaliados pela estatal antes que seja dado o aval para que peças de teatro, ciclos de debates e exposições já aprovados em seus editais entrem em cartaz.”, diz trecho da reportagem.
As novas regras foram implantadas no início deste ano, e a preocupação de funcionários da estatal é o de que essas novas regras acabem provocando censura a certos projetos artísticos e culturais que não comunguem da mesma visão de mundo do governo. E também o de que haja perseguição aos autores dessas obras.
Esses relatórios eram feitos também em governos anteriores, mas os novos tópicos “pontos de polêmica para a imagem da Caixa e histórico dos artistas e produtores nas redes sociais” são como uma autorização para perseguição e censura. Em relação a esse tema, no documento ao qual a Folha teve acesso está a seguinte descrição: “possíveis riscos de atuação contra as regras dos espaços culturais, manifestações contra a Caixa e contra governo e quaisquer outros pontos que podem impactar”.
Os relatórios são elaborados pela superintendência da estatal em Brasília, e pela Secretária de Comunicação do Governo Federal (Secom). Em geral, eles contêm sinopses do projeto cultural que está sendo apresentado, histórico dos proponentes, custos do projeto, e justificativas para a seleção.
É fácil supor que projetos que abordem a temática LGBT e que tenha posicionamento contrário à ditadura militar sejam reprovados.
Já de acordo com as novas regras foram suspensos ao menos três espetáculos teatrais Abrazo, Gritos, e Lembro Todo Dia de Você, uma mostra de cinema, e uma série de palestras que falariam sobre democracia, história, ciência, e ambiente.
Lembremos que a tesoura da censura do governo já entrou em ação em abril no Banco do Brasil. O governo vetou uma peça publicitária da estatal estimulando a abertura de contas para o público jovem. Caiu a propaganda e caiu também o diretor de Comunicação e Marketing do banco, Delano Valentim.
A peça publicitária que começou a circular em 1o de abril e chegou a ficar duas semanas no ar era estrelada por atores brancos e negros que representavam a diversidade racial e sexual no país.
O vídeo pode ser visto no Youtube:
Veja o leitor se consegue encontrar nele algum atentado contra a moral e os bons costumes, pois esse blogueiro tentou, mas não conseguiu ver essas características no filme. Há na peça apenas o que ela se propõe: um chamado à abertura de conta e não um julgamento moral.
Antes disso, o governo já havia vetado três peças publicitárias; uma cartilha voltada para a saúde das mulheres trans, uma campanha de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis veiculada durante o carnaval, e até uma caderneta voltada ao público adolescente com informações sobre saúde e calendário de vacinas foi suspensa.
E esse clima de insanidade que vê um atentado contra a moral e os bons costumes vem tentando se instalar em outras partes do país. Como foi o caso polêmico da Bienal do Livro realizada no Rio de Janeiro em setembro deste ano.
No dia (2) alguns usuários foram ao Twitter criticar uma HQ que estava sendo vendida na Bienal que continha dois heróis se beijando. Alguns internautas chegaram a enviar essas críticas ao presidente Jair Bolsonaro. Na quarta-feira, o vereador carioca Alexandre Isquierdo (DEM) também reclamou da venda da publicação.
A novela continuou na quinta-feira (5). A Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop) expediu uma nota dizendo que o livro tinha que ser vendido lacrado e com advertência de classificação indicativa de conteúdo em publicações com cenas impróprias a crianças e adolescentes. No mesmo dia, guardas municipais foram a Bienal com intenção de recolher os livros.
Na manhã de sexta-feira (6), a proibição teve um efeito contrário ao que o prefeito esperava: em menos de uma hora todos os exemplares da HQ “Vingadores — A Cruzada das Crianças” disponíveis nos estandes da Bienal do Livro foram vendidos.
Na tarde da sexta-feira, a Bienal foi à justiça pedir que fossem garantidos aos expositores o direito de comercializar obras literárias sobre as mais diversas temáticas.  No fim da tarde daquele dia, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro publicou decisão liminar impedindo a prefeitura do Rio de apreender livros na Bienal e cassar o alvará do evento.
Reviravolta no caso, e uma nova liminar do TJ do Rio, assinada pelo desembargador Cláudio de Melo, suspendia a liminar que o impedia o recolhimento de exemplares solicitados pelo prefeito Marcelo Crivella.
A Procuradoria Geral da República, através da então procuradora, Raquel Dodge, entrou no caso um pedido ao STF contra o recolhimento das obras. Finalmente, o ministro do Supremo, Dias Toffoli, derrubou a censura, encerrando a questão após uma longa queda de braço entre o prefeito do Rio, os expositores, e a Justiça.
O Brasil vive um momento preocupante no que diz respeito às liberdades individuais e ao meio ambiente. É preciso ficar atento, e não se contentar com censuras e mordaças, afinal, vivemos em um país democrático e queremos continuar assim, mesmo com nossa democracia andando mal das pernas, ainda assim é preferível ela aos regimes autoritários.
Há quem defenda a ditadura com unhas e dentes, usando para isso a moral e os bons costumes. Não há luz sob as cortinas de ferro, apenas sofrimento.
Enquanto isso a luta pelo combate à corrupção vai sendo empurrada para debaixo do tapete. Afinal, é preciso combater às imaginárias bruxas, a corrupção real e cruel, não.

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