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A lição dos baobás

Posted by Cottidianos on 20:19
Terça-feira, 20 de novembro
Vou deixar a vida me levar
Pra onde ela quiser
Seguir a direção
De uma estrela qualquer
É, não quero hora pra voltar, não
Conheço bem a solidão, me solta
E deixa a sorte me buscar
(Vou deixar – Skank)


No coração da África, havia uma extensa planície. E no centro dessa planície, erguia-se uma alta e frondosa árvore. Era o baobá. Um dia, embaixo do sol escaldante do meio-dia africano, corria pela planície um coelhinho, que, cansado, quando viu o baobá, correu a abrigar-se à sua sombra. E ali, protegido pela árvore, ele se sentiu tão bem, tão reconfortado, que olhando para cima não pôde deixar de dizer:
— Que sombra acolhedora e amiga você tem, baobá! Muito obrigado!
O baobá, que não costumava receber palavras de agradecimento – como muitos de nós também não recebemos - ficou tão reconhecido, que fez balançar os seus galhos e tremular suas folhinhas, como numa dança de alegria.
O coelho, percebendo a reação da árvore, quis aproveitar-se um pouquinho da situação e disse assim:
— É, realmente sua sombra é muito boa.... Mas e esses seus frutos que eu estou vendo lá em cima? Não me parece assim grande coisa...
O baobá, picado no seu amor próprio, caiu na armadilha. E soltou, lá de cima de seus galhos, um belo e redondo fruto, que rolou pelo capim, perto do coelhinho. Este, mais do que depressa, farejou o fruto e o devorou, pois ele era delicioso. Saciado, voltou para a sombra da árvore, agradecendo:
— Bem, sua sombra é muito boa, seu fruto também é da melhor qualidade. Mas... e o seu coração, baobá? Será ele doce como seu fruto ou duro e seco como sua casca?
O baobá, ouvindo aquilo, deixou-se invadir por uma emoção que há muito tempo não sentia. Mostrar o seu coração? Ah... Como ele queria... Mas era tão difícil... Por outro lado, o coelhinho havia se mostrado tão terno, tão amigo... E assim, hesitante, o baobá foi lentamente abrindo o seu tronco. Foi abrindo, abrindo, até formar uma fenda, por onde o coelho pôde ver, extasiado, um tesouro de moedas, pedras e jóias preciosas, um tesouro magnífico, que o baobá ofereceu a seu amigo.
Maravilhado, o coelho pegou algumas joias e saiu agradecendo:
— Muito obrigado, bela árvore! Jamais vou te esquecer! E chegando à sua casa, encontrou sua esposa, a coelha, a quem presenteou com as joias. A coelha, mais do que depressa, enfeitou-se toda com anéis, colares e braceletes e saiu para se exibir para suas amigas.
A primeira que ela encontrou foi a hiena, que, assaltada pela inveja, quis logo saber onde ela havia conseguido joias tão faiscantes. A coelha lhe disse que nada sabia, mas que fosse falar com seu marido. A hiena não perdeu tempo: foi ter com o coelho, que lhe contou o que havia acontecido.
No dia seguinte, exatamente ao meio-dia, corria a hiena pela planície e repetia passo a passo tudo o que o coelho lhe havia contado. Foi deitar-se à sombra do baobá, elogiou-lhe a sombra, pediu-lhe um fruto, elogiou-lhe o fruto e finalmente pediu para ver-lhe o coração.
O baobá, a quem o coelhinho na véspera havia tornado mais confiante e mais generoso, dessa vez nem hesitou. Foi abrindo o seu tronco, foi abrindo, bem devagarinho, saboreando cada minutinho de entrega. Mas a hiena, impaciente, pulou com suas garras no tronco do baobá, gritando:
— Abra logo esse coração, eu não aguento esperar! Ande! Eu quero todo esse tesouro para mim, eu quero tudo, entendeu? O baobá, apavorado, fechou imediatamente o seu tronco, deixando a hiena de fora a uivar desesperada, sem conseguir pegar nenhuma joia. E por mais que ela arranhasse a árvore, ela nada conseguiu.
A partir desse dia é que a hiena ganhou o costume de vasculhar as entranhas dos animais mortos, pensando encontrar ali algum tesouro. Mal sabe ela que esse tesouro só existe enquanto o coração é vivo e bate forte.
Quanto ao baobá, nunca mais ele se abriu.
O delicado e tocante relato é uma lenda africana, chamada, O Coração do Baobá, árvore que, especialmente para o povo africano, é revestida de grande significado.
Existem várias lendas que tentam explicar a árvore. Diz outra que:
No início dos tempos,quando o Deus criou o mundo, primeiro fez as águas e as terras. Depois admirando a paisagem, criou diversas espécies para viver o resto dos tempos.
A primeira árvore que fez era bem grande e forte : foi um baobá.
O baobá nasceu ao lado de um rio de águas tranquilas, onde se refletia e acompanhava seu próprio crescimento.
Atento, observava a natureza ao redor, os outros tipos de plantas e flores.
A enorme árvore tinha tudo para ser feliz, mas parecia insatisfeita e descontente.
— Por que não tenho flores o ano inteiro? - Indagava o baobá.
— E por que não tenho flores de várias cores? - Assim prosseguia por horas.
O baobá sentia inveja das outras espécies.
Inconformado, chamou o criador e fez exigências sem fim.
— Não reclame, você é perfeito: dá frutos deliciosos, sementes, flores, sombra e até água! - Disse o Deus.
No entanto o baobá não desistia. Seguiu o criador por toda a África, fazendo suas queixas. Dizem que é por isso que há baobás por todo o continente!
— Não posso acreditar que é infeliz! Justo você, que caprichei tanto! - Insistia o Deus.
A árvore continuava reclamando.
Chegou o dia em que o criador não aguentou mais ouvir lamentações:
— Chega de blábláblá!- Disse aborrecido.
Então arrancou o tronco da terra e plantou o baobá de novo, com as raízes viradas para cima!

A verdade é que mesmo, segundo a lenda, tendo sido plantada de cabeça para baixo, o baobá continuou crescendo como crescem os filhos e filhas de reis e rainhas: belos, deslumbrantes, exuberantes, e majestosos.
Hoje é 20 de novembro, em muitos municípios brasileiros, feriado do Dia da Consciência Negra. Um dia de luta de afirmação da negritude,  e de políticas de afirmação para este segmento da população.
O Dia da Consciência Negra, que na verdade, nasceu como uma homenagem ao líder negro, quilombola, Zumbi dos Palmares, nascido em 1655, e assassinado pelas tropas do governo, no dia, em 20 de novembro 1695.
 A data foi oficializada em 2011, por meio da Lei 12.519, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela então presidente, Dilma Rousseff. Não é feriado nacional. Cabe a cada município decretar ou não feriado nesse dia. Entretanto, tramita no Congresso um projeto de lei, o PLS 482/2017, d e autoria do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que estabelece o 20 de novembro como feriado em todo o território nacional.
Em entrevista à Rádio Senado, o senador defendeu a proposta usando o seguinte argumento: “A escravidão é a maior ignomínia, o maior crime que pode ser perpetrado contra um ser humano, e nós somos uma sociedade, um Estado, estruturado nesse crime. Temos que fazer nossa catarse, a superação disso, que só ocorrerá nas gerações futuras se isso for debatido nas escolas e no dia a dia”.
Em resumo: um dia de reafirmar a luta pelos direitos iguais. É verdade que a Constituição garante esse direito a todos, mas, na prática, sabemos que as coisas não são bem assim. O povo negro continua a sofrer, ainda nos dias de hoje, preconceito e discriminação. Ainda quando atinge o topo da fama e do sucesso, ainda assim são alvos de pedradas, na forma de ofensas e injúrias raciais, como é o caso de muitos atores, atrizes, e atletas.
É também por isso, que essa população luta para que políticas de afirmação, como por exemplo, as cotas raciais nas universidades, sejam mantidas. Questão controversa é essa. Muitos brancos, e mesmo alguns negros, são contra a instituição de cotas para negros na universidade.
Ora, pensemos da seguinte forma. Nos tempos de colônia e república, alguém via algum negro nos bancos de universidades? Isso era impensável. Mesmo depois da abolição, os negros continuaram enfrentando enormes dificuldades para o ingresso em instituições superiores. Então, o que se tem é um déficit do estado para com a população negra. As cotas são uma tentativa de sanar esse déficit. Há quem concorde, e há quem discorde, mas precisa ser negro para entender na alma essa necessidade, ou branco que tenha uma percepção da história de luta desse segmento da população.
Mas, voltemos aos baobás, que se posicionam na vida sempre com porte altivo e majestoso. Eles são assim. É da natureza deles ser dessa forma. São árvores raras de se encontrar, mas se, por acaso, o caro leitor, ou leitora, tiver a ventura de encontrar com algum deles na estrada da vida, jamais o verá curvado, submisso, “chorando pitangas”, como diz o ditado popular. Se encontrar uma árvore assim, se dizendo baobá, seja educado (a), diga-lhe “passe bem”… E siga seu caminho, pois, certamente, acabou de encontrar um falso baobá.
E essa lição aprendida com essas milenares árvores majestosas, não servem apenas para a vida do povo negro, mas também como de todas as outras minorias, ou seja, a de não se sentirem diminuídas, nem menores que ninguém. De olhar sempre em direção ao alto, pois é de lá que vem a força que renova em nós, todos os dias, o compromisso de por o pé, firmemente na estrada... E prosseguir.
Se a vida é feita de avanços e retrocessos, saiba, que dos retrocessos pode resultar saltos que avançam mil metros. Se soubermos aproveitar os recuos da vida para rever nossas estratégias, retraçar nossos planos e objetivos, e recuperarmos nossa energia, então voltaremos à batalha com novos impulsos, forças renovadas, e mais fortes.
A árvore rainha de que trata esse texto, é da família Bombacaceae, e é o mais conhecido membro do gênero Adansonia – um pequeno grupo de árvores tropicais do velho mundo. Existem oito espécies do gênero, uma na África, seis em Madagascar, e uma na Austrália.
O tronco da árvore é imenso e as folhas e galhos parecem bastante desproporcionais em relação a ele. No inverno, ela fica desfolhada, como se recuasse para reavaliar suas estratégias, e voltar ainda mais exuberante na primavera e no verão, momento em que, além das folhas de um verde exuberante, com as galhadas renovadas, aparecem também flores exóticas brancas e ricas em néctar que nascem de cabeça para baixo e apenas se abrem à noite. Flores noturnas só poderiam ter por parceiros seres noturnos, e é justamente aí que os morcegos entram na história. São eles que polinizam as flores do baobá.
Desse processo de polinização nascem grandes frutos ovais que são cobertos por uma espécie de veludo que variam em tamanho e formato, e podem conter de 30 a mais de 200 sementes. Estas, ficam dentro de uma polpa ácida branca, que, por sua vez, é envolvida por uma camada de fibras. Do verão ao início do outono é o tempo do fruto amadurecer, e depois caírem.
Estas árvores de grande porte e milenares com certeza foram testemunhas silenciosas do rapto de muitos de seus concidadãos africanos que eram enviados a outros continentes. Imponentes, devem ter vertido rios de lágrimas de seus olhos bondosos ao ouvir o grito de dor dos negros que acorrentados, feridos, machucados, eram, como árvores de raízes profundamente fincadas no solo, arrancados de seu lugar de origem. Devem ter sentido-se incapazes de aliviar todo aquele sofrimento.
 Eram plantas do coração cheio de riquezas. Podiam dar flores, frutos, sombra, e acumular muita água em seus enormes e grossos troncos, água que matava a sede dos negros africanos, mas não podiam tirá-los das mãos dos opressores, e isso lhes doía o coração.
Mas, com sua atitude, sua força para sobreviver em solos áridos, secos,e e pedregosos, os baobás podiam, pelo menos, dar um recado aos negros que eram arrastados da terra natal, para futuros distantes, incertos, e cheios de sofrimento: Sejam nobres! Altivos! Não deixem que seja diminuída sua personalidade, sua inteligência, sua cultura. Afinal, você também é filho de nossa terra, nosso irmão. Quando estiverem enfrentando as dificuldades e revezes da vida, pense em nós que sempre miramos o alto, de onde nos vem luz e força para atravessarmos os séculos, firmes, fortes,e majestosos. Lembre-se: no teatro da vida, vocês são atores principais, não se contentem com papeis secundários. Elevem-se ao Deus poderoso, como todos os dias elevamos nossos galhos aos céus e a ele imploramos força e proteção. E não se esquecem de manter suas raízes firmemente arraigadas à terra, para que nenhum vento forte e repentino os derrube e os ponha abaixo, afinal é pelas raízes que sugamos da mãe terra toda água e nutrientes de que necessitamos.
Como os negros africanos, as diversas espécies de baobás também foram habitar em vários cantos do planeta. Quem sabe eles não tem uma lição a lhe ensinar? E se na sua região, em seu país, em sua cidade, não houver baobás, certamente, terá uma árvore irmã que, além de frutos, flores, talvez esteja, silenciosamente, querendo ensinar-lhe algo. Por que não abre o coração para ouvir e aprender?

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