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Natal: Tempo de esperança

Posted by Cottidianos on 12:52
Sábado, 23 de dezembro


As luzes piscam, coloridas, faiscantes. As fachadas das casas e das lojas vestem sua melhor roupa brilhante para celebrar esta época do ano. As ruas e avenidas caminham na mesma direção. Árvores naturais e artificiais recebem bela decoração. As lojas, shoppings e centros comerciais estão apinhados de gente, carregando sacolas, abarrotadas de presentes que serão distribuídos entre os entes queridos. Nas igrejas, os sinos tocam alegre e festivamente. Enquanto das cozinhas das casas saí um cheiro de comida gostosa que será servida na ceia de Natal.

É uma época mágica, onde aflora a solidariedade.

No outro lado da moeda da vida está os menos afortunados, aqueles a quem a sorte não lhes sorriu. Não tem casa, não tem teto, não tem chão. Vivem nas ruas, perambulando,à toa, dia e noite, faça chuva ou faça sol, seja noite estrelada ou noite escura.

Porém, mesmo para estes, há olhos e mãos de voluntários que se voltam, que se doam, e que se esmeram em preparar para eles uma ceia humilde, cujo significado ultrapassa o alimentar o corpo que muito precisa, e, muito mais que isso, alimenta-se a alma daqueles cuja vida a muito perdeu a luminosidade.

Há também os que, nas favelas, guetos e periferias das grandes cidades, mesmo tendo um teto, lhes falta o luxo e o glamour das comemorações de Natal que só lhes é permitido participar através da visão das revistas e dos programas de televisão. Para estes o glamour do Natal, eles vêem e comem apenas com os olhos.

A grande maioria, com os olhos fitos nos presentes que ganharam, com a boca cheia de saliva pelas carnes, saladas, farofas, e frutas diversas que comem, nem se lembram de agradecer o dom vida ao dono da festa que nasceu pobre e esquecido, em uma manjedoura, entre pastores e animais, nos arredores de uma gruta de Belém.

Outros, grande parte daqueles que estão no poder, além de não se lembrarem do humilde menino nascido naquela gruta obscura, ainda o maltratam, renegam, e o matam. Por causa dos muitos bilhões de reais desviados dos cofres públicos, e que poderiam ser aplicados em saúde, educação, e segurança, há meninos Jesus nascendo e morrendo em hospitais nos quais os médicos não dispõem do mínimo necessário para o parto das crianças. Isso quando há médicos para atenderem a parturiente neste momento tão delicado. Muitos estabelecimentos de saúde carecem de médicos e enfermeiras.

Por causa da falta de caráter de muitos políticos e de homens do poder judiciário, há milhares de meninos Jesus nas esquinas, pedindo, esmolando umas parcas moedas para comprarem ao menos um pedaço de pão que alimente suas barrigas famintas.

Por causa da ambição daqueles que, sem nenhum compromisso com o povo brasileiro, voltam às costas para ele, e abraçam e beijam as empresas que lhes depositam milhões de propinas em suas abarrotadas contas, há muitas Marias e Josés sem esperança no futuro deles próprios e de seus rebentos. Por todo o território brasileiro, há meninos Jesus nascendo e morrendo em grutas obscuras, quando o dinheiro que os pais pagaram de impostos ao governo daria para propiciar que nascessem em leitos dignos e confortáveis de bons hospitais.

Porém, nem toda esperança está perdida para aqueles que sabem enxergar o Natal com os olhos da fé. Veja, por exemplo, o caso daquele menino que nasceu a tanto tempo naquela gruta de Belém. Ele veio ao mundo nas piores condições nas quais uma criança pode vir ao mundo. Entretanto, arrebatou multidões, incomodou aos poderosos, e transformou sua vida numa vida tão cheia de plenitude e de amor, que até hoje, sua luz brilha, seus ensinamentos florescem, e são repassados de geração a geração.

Quantas crianças mundo afora nasceram em condições degradáveis e se tornaram homens e mulheres prósperos, conhecidos, e admirados pelo mundo inteiro?

É com este sentimento de esperança e fé que este blog vem desejar a todos os seus leitores um FELIZ NATAL!

Abaixo, este blog compartilha um conto de Natal, de autoria do saudoso escritor e jornalista brasileiro, Rubem Braga. O conto é ambientado em um ambiente rural, mas poderia muito bem retratar o drama de famílias pobres que habitam os grandes centros de qualquer parte do mundo.

***



Conto de Natal

Rubem Braga

Sem dizer uma palavra, o homem deixou a estrada andou alguns metros no pasto e se deteve um instante diante da cerca de arame farpado. A mulher seguiu-o sem compreender, puxando pela mão o menino de seis anos.

— Que é?

O homem apontou uma árvore do outro lado da cerca. Curvou-se, afastou dois fios de arame e passou. O menino preferiu passar deitado, mas uma ponta de arame o segurou pela camisa. O pai agachou-se zangado:

— Porcaria...

Tirou o espinho de arame da camisinha de algodão e o moleque escorregou para o outro lado. Agora era preciso passar a mulher. O homem olhou-a um momento do outro lado da cerca e procurou depois com os olhos um lugar em que houvesse um arame arrebentado ou dois fios mais afastados.

— Péra aí...

Andou para um lado e outro e afinal chamou a mulher. Ela foi devagar, o suor correndo pela cara mulata, os passos lerdos sob a enorme barriga de 8 ou 9 meses.

— Vamos ver aqui...

Com esforço ele afrouxou o arame do meio e puxou-o para cima.

Com o dedo grande do pé fez descer bastante o de baixo.

Ela curvou-se e fez um esforço para erguer a perna direita e passá-la para o outro lado da cerca. Mas caiu sentada num torrão de cupim!

— Mulher!

Passando os braços para o outro lado da cerca o homem ajudou-a a levantar-se. Depois passou a mão pela testa e pelo cabelo empapado de suor.

— Péra aí...

Arranjou afinal um lugar melhor, e a mulher passou de quatro, com dificuldade. Caminharam até a árvore, a única que havia no pasto, e sentaram-se no chão, à sombra, calados.

O sol ardia sobre o pasto maltratado e secava os lameirões da estrada torta. O calor abafava, e não havia nem um sopro de brisa para mexer uma folha.

De tardinha seguiram caminho, e ele calculou que deviam faltar umas duas léguas e meia para a fazenda da Boa Vista quando ela disse que não agüentava mais andar. E pensou em voltar até o sítio de «seu» Anacleto.

— Não...

Ficaram parados os três, sem saber o que fazer, quando começaram a cair uns pingos grossos de chuva. O menino choramingava.

— Eh, mulher...

Ela não podia andar e passava a mão pela barriga enorme. Ouviram então o guincho de um carro de bois.

— Oh, graças a Deus...

Às 7 horas da noite, chegaram com os trapos encharcados de chuva a uma fazendinha. O temporal pegou-os na estrada e entre os trovões e relâmpagos a mulher dava gritos de dor.

— Vai ser hoje, Faustino, Deus me acuda, vai ser hoje.

O carreiro morava numa casinha de sapé, do outro lado da várzea. A casa do fazendeiro estava fechada, pois o capitão tinha ido para a cidade há dois dias.

— Eu acho que o jeito...

O carreiro apontou a estrebaria. A pequena família se arranjou lá de qualquer jeito junto de uma vaca e um burro.

No dia seguinte de manhã o carreiro voltou. Disse que tinha ido pedir uma ajuda de noite na casa de “siá” Tomásia, mas “siá” Tomásia tinha ido à festa na Fazenda de Santo Antônio. E ele não tinha nem querosene para uma lamparina, mesmo se tivesse não sabia ajudar nada. Trazia quatro broas velhas e uma lata com café.

Faustino agradeceu a boa-vontade. O menino tinha nascido. O carreiro deu uma espiada, mas não se via nem a cara do bichinho que estava embrulhado nuns trapos sobre um monte de capim cortado, ao lado da mãe adormecida.

— Eu de lá ouvi os gritos. Ô Natal desgraçado!

— Natal?

Com a pergunta de Faustino a mulher acordou.

— Olhe, mulher, hoje é dia de Natal. Eu nem me lembrava...

Ela fez um sinal com a cabeça: sabia. Faustino de repente riu. Há muitos dias não ria, desde que tivera a questão com o Coronel Desidério que acabara mandando embora ele e mais dois colonos. Riu muito, mostrando os dentes pretos de fumo:

— Eh, mulher, então “vâmo” botar o nome de Jesus Cristo!

A mulher não achou graça. Fez uma careta e penosamente voltou a cabeça para um lado, cerrando os olhos. O menino de seis anos tentava comer a broa dura e estava mexendo no embrulho de trapos:

— Eh, pai, vem vê...

— Uai! Péra aí...

O menino Jesus Cristo estava morto.

Texto extraído do livro "Nós e o Natal", Artes Gráficas Gomes de Souza - Rio de Janeiro, 1964, pág. 39.

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