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Restos de Carnaval

Posted by Cottidianos on 15:11
Segunda-feira, 08 de fevereiro


Tem gente que critica o carnaval. Os que assim o fazem dizem que é uma ilusão que dura apenas três dias. Em alguns Estados brasileiros, como a Bahia, por exemplo, essa ilusão dura bem mais que isso. Eles estão errados? Não, não estão. O carnaval é mesmo uma ilusão que dura isso mesmo: três dias. Outros dizem ainda que ele serve ao poder quando ajuda a mascarar uma realidade que, se encarada de frente, não tem a graça dos lança perfumes. Mais uma vez estão certos. Por pelo menos três dias, se esquece de que o país vive um período de crises nos mais diversos setores. Se bem que os críticos dessa corrente, ultimamente, não tem muita razão de falar. Pois, este ano, não deu para mascarar a realidade, pois em muitas cidades brasileiras, as prefeituras cancelaram o carnaval por falta de verba. Por esse motivo, muitas escolas de samba dessas cidades, não desfilaram. À exceção de vitrines como o Rio de Janeiro e São Paulo, e outras capitais, que tem sua própria estrutura carnavalesca, nas nas cidades do interior, nada de desfiles patrocinados pelo poder público.

Ah, os blocos de rua... Esses são teimosos, não precisam da ajuda do poder público para espalhar alegria pelas ruas. O povo saí às ruas, num ávido desejo de diversão, de extravasar suas tristezas e decepções carregadas no ombro durante o ano. É hora de viver a ilusão. O homem pode se vestir de mulher. A mulher pode se fantasiar de pirata. O ambulante pode se fantasiar de rei, e o rei pode se fantasiar de ambulante. É hora de cantar as marchinhas antigas, tão bem elaboradas em suas letras, e de cantar as marchinhas modernas, sem tanta riqueza e rebuscamento nas letras, mas com a mesma alegria daquelas. E seguem as marchinhas, com letras crítico-engraçadas, falando de política, economia, comportamento, sociedade. As fantasias, cada uma mais criativa que a outra. Pessoas honestas vestem máscaras de políticos corruptos. Uma forma de protesto, talvez.

O que é melhor: Uma ilusão para se viver em três dias, ou a tristeza de se carregar pelo ano todo o peso de não ter vivido essa ilusão?

A ilusão, melhor dizendo, a alegria, disfarça a dor, torna menos pesada a cruz do sofrimento, da opressão. E desses ramos nascem flores lindas, perfumadas, musicais. Foi assim nas fazendas do Sul dos Estados Unidos durante a época da escravidão, sob a opressão e discriminação, os negros cantavam, e trabalhavam e cantavam, e sofriam, e de seu sofrimento e de seu canto, nasceu à beleza do blues, do jazz. Nas fazendas brasileiras de todo o país, o chicote estalava nas costas dos negros nos canaviais e nos cafezais. Os negros sofriam, resignados. Sofriam, cantavam, e trabalhavam, e dessa tríade, nasceu a gostosa e envolvente batucada do samba.

No carnaval, ponha sua máscara, e se imagine pierrô ou colombina. Distribua alegria, sorriso e empolgação. Ao fim dos três dias, deixe sua máscara cair, e tenha a coragem de ser que você é, de verdade, sem subterfúgios. Porém, em qualquer dos momentos, nunca deixe de sair pelas ruas da cidade, distribuindo as perfumadas rosas da alegria, e o doce encanto de seu sorriso.

Se sentir dor, tristeza, mágoa, cantarole uma melodia, faça uma batucada. Quem sabe, como os antigos, sua tristeza não se transforme em uma frondosa e bela canção?

Abaixo, compartilho com vocês, um conto de uma grande mestra das letras, chamada, Clarice Lispector. Uma escritora que navegava com tranquilidade e maestria pelo mar das palavras. O conto se chama, Restos de Carnaval, publicado no livro, Felicidade clandestina. Rio de Janeiro:Rocco, 1998.

***



Restos do carnaval
Clarice Lispector


Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.

E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à idéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morreríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! Não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.

Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo, eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

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