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Neguinho da Beija-Flor: Uma fortaleza no samba

Posted by Cottidianos on 02:02
Domingo, 15 de fevereiro

Quando o amor invade a alma... É magia
É inspiração pra nossa canção... Poesia
O beijo na flor é só pra dizer
Como é grande o meu amor por você!

(Samba Enredo 2011 - Roberto Carlos: a Simplicidade do Rei -
G.R.E.S. Beija-Flor de Nilópolis (RJ))



Na sexta-feira (13), o Largo do Rosário, uma das movimentadas praças do centro de Campinas, esteve lotada de pessoas, sedentas da voz de um dos maiores interpretes do samba, e interprete oficial dos sambas-enredo da Beija-Flor, escola de samba do grupo especial do Rio de Janeiro. O evento, patrocinado pela Prefeitura Municipal, abria, oficialmente, o carnaval na cidade. Na ocasião, foi entregue a chave da cidade para o Rei Momo e a Rainha do Carnaval. As expressões culturais serão inúmeras pelos quatro cantos da cidade, com desfile de escolas de samba, trios elétricos e blocos carnavalescos. Em outras palavras: O samba vai correr livre, leve e solto pela cidade, incendiando o sangue dos foliões.



Amante de um bom samba, não poderia deixar de conferir esse espetáculo ao ar livre. Ainda em casa, enquanto me arrumava para ir ao show, pensei: “Esse Neguinho da Beija-Flor é um forte”. Já tinha ouvido essa frase de outras pessoas no elevador do prédio onde moro, e também na rua. Isso me motivou ainda mais, pois além do “cara” cantar bem, ainda traz no peito a marca dos fortes.

Enquanto seguia pela Avenida Francisco Glicério, me aproximando do local do evento, percebia a presença dos ambulantes que vendiam, água, cerveja, pipocas, espetinhos de carne, doces e muitas outras guloseimas. Percebi também que muitas outras pessoas faziam o mesmo trajeto que eu. Quando cheguei à praça, já havia ocorrido a entrega das chaves da cidade para o Rei Momo e a Rainha. Se apresentando no palco, estava o grupo 4 Stylu's. Parei fiquei curtindo a música, depois circulei entre a multidão, e observando a praça de modo geral.



O ambiente se mostrava bastante tranquilo e democrático. Casais se abraçavam. Amigos conversavam animadamente. Alguns seguravam suas latinhas de cerveja, distraídos. Outros sorviam o líquido gelado como se fosse a última bebida da face da terra. Outros se abasteciam com água mesmo. Muitos outros não tomavam coisa alguma. Entretanto, todos tinham o mesmo desejo: Cair no samba, cantando por um autentico filho da Beija-Flor de Nilópolis.

O grupo que se apresentava cantava e tocava bem, entretanto ainda não conseguia incendiar a multidão. Como achei a coisa meio morna, resolvi dar um pulo numa banca de revista nas proximidades, para dar uma olhada nas novidades, como diz o ditado: “Com um olho no peixe, outro gato”, ou seja, atento às novidades, mas de olho no som que vinha do palco.

Voltei à me juntar à multidão. O apresentador do show anunciava: “Ele já está aqui, e  daqui há pouco estará aqui com vocês”. E, de fato, não demorou muito para ele chegar. Quando o interprete subiu ao palco e saudou a multidão com seu grito característico: “Olha a Beija-Flor, aí gente!”, o público, que estava meio parado, foi à loucura, como brasa que se acende repentinamente.



Ele abriu o show, com o jingle da Rede Globo, apresentando o carnaval carioca que, há tempos, se tornou conhecido em todo o país. A emissora detêm os direitos de transmissão do desfile das escolas de samba do grupo especial do Rio.

Lá vou eu, lá vou eu /Hoje a festa é na avenida
No carnaval da globo / Feliz eu tô de bem
Com a vida vem amor / Vem... deixa o meu samba te levar
Vem nessa pra gente brincar / Pra embalar a multidão /
Sai pra lá solidão.

Neguinho, seguiu cantando grandes sambas-enredo que marcaram o desfile das escolas de samba, como por exemplo, a música do Salgueiro, do carnaval de 1993, Explode Coração, com seu refrão conhecido e cantando até hoje:

Explode coração
Na maior felicidade.
É lindo o meu Salgueiro
Contagiando, sacudindo essa cidade.

Fiquei olhando a multidão ao meu redor. Parecia que tinham brasas nos pés, de tanto que sambavam. Alguns ensaiavam uns passos tímidos, outros se soltavam, em outros, o movimento era quase imperceptível, mas todos se banhavam com prazer naquele mar de música.

A certa altura do show, o cantor disse, antes da cantar o samba-enredo, É Hoje, da União da Ilha do Governador, do carnaval de 1982: “Ofereço este samba a todos vocês que rezaram por mim. Por causa das preces de vocês posso ter a alegria de estar cantando para vocês hoje”, e cantou, ao som da excelente banda que o acompanhava:

A minha alegria atravessou o mar / E ancorou na passarela
Fez um desembarque fascinante / No maior show da Terra
Será que eu serei /o dono desta festa um rei
No meio de uma gente tão modesta
Eu vim descendo a serra / Cheio de euforia para desfilar
O mundo inteiro espera / Hoje é dia do riso chorar

Levei o meu samba / Pra mãe-de-santo rezar
Contra o mau olhado / Carrego o meu Patuá

Acredito ser o mais valente / Nesta luta do rochedo com o mar
(E com o mar)
É hoje o dia da alegria e a tristeza /
Nem pode pensar em chegar
Diga espelho meu / Se há na avenida /
Alguém mais feliz que eu.

Neguinho havia chegado ao palco trajando calça branca, com um paletó branco, cheio de brilho e, por baixo dele, usava uma camiseta branca, cujos dizeres traziam o lema da sua escola: “Olha a Beija-Flor, aí, gente!” Após algum tempo, resolveu tirar o paletó e ficar apenas com a camiseta. Esbanjava uma enorme cabeleira e exibia o seu característico sorriso cativante, que conquistou os amantes do samba.

Olhando para aquele homem cheio de vigor e vitalidade que se apresentava na agradável noite campineira, para cerca de seis mil pessoas, fiquei pensando nas pedras enormes que já haviam atravessado o caminho dele. Aquele sorriso e leveza já haviam se transformado, em passado recente, em lágrimas, tristeza e preocupação.

Natural de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, o sambista começou a carreira aos 20 anos de idade. Hoje percorre o Brasil inteiro fazendo shows e também se apresenta no exterior. É um dos nomes mais influentes do samba atual, e principal interprete da Beija-Flor, de Nilópolis, tendo conquistado, junto com a escola, diversos títulos de campeão do carnaval carioca.



No início de junho do ano de 2008, uma grande tristeza se abateu sobre sua vida e sobre o mundo do samba. Nesse ponto, deixo que Neguinho relate o próprio drama a vocês, através de uma entrevista que concedeu a revista Isto É, na edição 2046, de 28 de janeiro de 2009: “Foi no início de junho do ano passado. Fui ao banheiro e notei que havia sangue nas minhas fezes. Comentei com a minha mulher que eu poderia estar com hemorroidas. Nunca imaginei o pior, pensei que deveria ser uma coisinha de nada. Mas na segunda vez que vi sangue a chamei para ver. Pelo semblante da Elaine, senti que a coisa não era boa, porque ela já viveu essa experiência, já viu uma pessoa próxima com câncer de intestino. Na tarde daquele mesmo dia estávamos no médico. Ele fez um exame de toque e já marcou uma colonoscopia. Umas duas semanas depois da primeira consulta, veio o diagnóstico. Câncer”, conta ele. Em outro ponto dessa mesma entrevista ele acrescenta: “Eram dois tumores, um maior, de uns cinco centímetros, quase um limãozinho, e outro menor, do tamanho de um grão de milho. Com metástase.

O diagnóstico caiu na vida dele como uma bomba. Foram três dias de completa escuridão, dor e lágrimas. “Porque eu?” — perguntava a si mesmo — “Eu me cuido muito bem. Não sou usuário de drogas, não bebo, nem fumo, e ainda faço um tratamento ortomolecular. Nunca tive uma dor de cabeça, e agora tenho um câncer?” Elaine, a companheira com que vivia, estava grávida e ele perguntava-se: “Será que vou ver minha filha nascer?” Quando passava pela Avenida Marques de Sapucaí, lembrava dos inúmeros momentos gloriosos que já havia vivido ali e pensava: “Será que não vou mais cantar aqui?” Eram verdadeiras angústias personificadas em perguntas torturantes. O apoio da família e dos amigos funcionou como pílulas de entusiasmo e ele se refez, ganhou vontade de viver.



Na correria da vida de artista, pensando em shows, entrevistas, venda de discos, sucesso e fama, muita coisa passava despercebida, inclusive o fato de como era querido por tanta gente. A vida espiritual também era relegada a segundo plano.

 Ironicamente, a doença veio colocar essas coisas nos eixos. Passou a dar valor às pequenas coisas da vida. Ele que não revelava a idade, em hipótese alguma, deixou de lado essas vaidades e passou a dizê-la a quem perguntasse. Também passou a rezar... E muito. Apegou-se às orações como tábua de salvação. Lia muito a Bíblia, e também frequentava um centro espírita no centro do Rio, chamado Lar Frei Luiz, consultava-se também com o Dr. Fritz (entidade incorporada por um médium). Agora, ele que sempre foi vaidoso ao extremo, tinha que lidar com a perda de peso, com a queda de cabelos provocada pelo tratamento de quimio. Tinha vergonha de sair na rua, mas não tinha outro jeito. Quando saía, recebia apoio das pessoas que lhe diziam: “Você está bonito, assim sem cabelo.” “Essas pessoas não estão dizendo a verdade. Estão sendo apenas generosas comigo. Em outras palavras, estão me enganando. Mas nesses casos, é bom ser enganado”, pensava ele.

Nas sessões de radioterapia, certo dia conheceu um capitão da Aeronáutica. O homem, que aparentava pouco mais de trinta anos, tinha a fisionomia envelhecida e estava muito magro. Toda aquela situação aumentava ainda mais a angústia do sambista.

Em julho de 2008, Neguinho foi submetido a uma cirurgia, na qual, os médicos retiraram 40 cm de seu intestino que estavam afetados pelo tumor maligno. Entretanto, uma semana depois da cirurgia já dava entrevistas à imprensa, nesse período, em entrevista a Folha de São Paulo, ele dizia: “O público sabe dos meus discos, dos meus shows, das minhas viagens, do carro que eu tenho... Tem que saber das coisas ruins que estou passando também...”.

As mensagens de carinho do Brasil e do exterior chegavam como enxurradas de carinho e amor, e fortaleciam o animo do guerreiro. Começou as terríveis sessões de quimioterapia. Duas sessões por mês. Seis meses depois de ter encontrado o capitão da Aeronáutica, na sessão de quimioterapia, o encontrou novamente, enquanto passeava, com a família, no shopping. O capitão veio falar com ele, mas Neguinho não o reconheceu. “Quem era aquele homem revigorado que lhe falava?” Pensou ele. Então o capitão lembrou-lhe que tinham se conhecido na radioterapia. Aquele reencontro foi animador para o sambista. Enquanto o homem se afastava, Neguinho pensou. “Se ele que tinha um câncer da cabeça está tão bem assim. O milagre também pode acontecer em mim.”

Aproximava-se o carnaval. O interprete queira, a todo custo, puxar o samba enredo da escola de coração, como sempre fizera. Atravessar a Marques de Sapucaí, puxando um samba enredo, é um esforço colossal, mesmo assim, apesar do seu estado de saúde, ele acreditava que seria capaz. O seu sonho era o de que a médica suspendesse as sessões de quimioterapia, às vésperas do carnaval. A doutora dói irredutível: “Não podemos parar com as sessões de quimioterapia”. Tais sessões tem a finalidade de evitar a volta da doença. Durante as sessões ele não sentia nada, mas uns cinco dias depois... Começava sentir fortes e incômodos enjoos que o deixavam debilitado. Era essa a sua preocupação em relação ao carnaval.

Em dezembro daquele ano, durante os ensaios técnicos da escola, para o carnaval do ano seguinte, Neguinho se apresentou durante vinte minutos e, ao final, sentiu-se mal devido ao cansaço provocado pela quimioterapia. Uma nuvem de preocupação pairou sobre a Beija-Flor e sobre o mundo do samba. Afinal, a Marques de Sapucaí  teria ou não a voz de Neguinho da Beija-Flor, puxando a escola e alegrando o Brasil?

Enfim, chegou fevereiro de 2009, e com ele o carnaval. Em cima do carro, puxando o enredo da escola, estava um interprete careca, ainda em tratamento contra o câncer, mas cheio de alegria, sorriso e entusiasmo, como sempre havia sido. Ainda uma surpresa foi reservada ao público.



Antes do desfile da escola, foi realizado, em plena Avenida Marques de Sapucaí, o casamento de Neguinho da Beija-Flor, com Elaine Reis. O noivo usava uma confortável bata branca, cheia de brilho. A noiva usava um vestido branco e brilhante, decotado, e de frente única. Próximo a eles, no colo de familiares, estava a filha, Luana Flor, de cinco meses, que ele pensou se veria ou não ela nascer. Se brilho no olhar e sorrisos apaixonados fossem faíscas, a Marques de Sapucaí, teria visto cair sobre ela uma intensa chuva de faíscas brilhantes. Após o casamento, a Beija-Flor, entrou esplendida na avenida, às 3h16 da madrugada daquele dia, com o enredo, “No Chuveiro da Alegria, quem banha o corpo lava a alma na folia”.

Neguinho da Beija-Flor, apesar de sua frágil condição de saúde, cantou, entusiasticamente o samba-enredo, do início ao fim do desfile.

Neste carnaval de 2015, a escola traz o enredo: “Um griô conta a história: Um olhar sobre a África e o despontar da Guiné Equatorial. Caminhemos sobre a trilha de nossa Felicidade”. O samba é um fio condutor para se compreender a herança africana na cultura brasileira. A Beija-Flor será a terceira escola a desfilar na segunda-feira de carnaval. Presente ao desfile, estará a elite política da Guiné Equatorial, vendo a historia afro-brasileira, sendo contada e cantada, através da magia e do brilho do carnaval brasileiro. O principal interprete da escola, Neguinho da Beija-Flor, que neste ano completará 66 anos, estará lá defendo o título de campeão do grupo especial do carnaval carioca, com as garras de um tigre, a voz de um uirapuru e a leveza e suavidade dos beija-flores.

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