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O grande poeta parnasiano, Olavo Bilac, fala de Carlos Gomes, um gênio da música

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Quinta-feira, 18 de Setembro




Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores moças, mais amigas,
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...
O homem, a fera e o inseto, à sombra delas
Vivem, livres da fome e de fadigas:
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.
Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo. Envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem,
Na glória de alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem”!

(Velhas Árvores, poema de Olavo Bilac)

Este ano, completou-se 118 anos da morte do grande compositor, Carlos Gomes, nascido em Campinas, no dia 11 de julho de 1836, e cuja alma se elevou aos céus no dia 16 de setembro de 1896. Domingo passado estive, juntamente com o Coral PIO XI, aos pés do monumento-túmulo, no centro de Campinas, participando das homenagens a esse grande compositor.

Minha ideia primeira era escrever apenas um texto sobre o evento, mas navegando nos vastos mares da Internet, acabei por me deparar com uma crônica do grande poeta parnasiano, Olavo Bilac. Definiria o presente escrito como um mestre da palavra, falando a respeito de um mestre da música. Escrito no dia em que se inaugurava aquele monumento-túmulo, no qual o PIO XI fez sua apresentação musical, Bilac, fala de passagens difíceis da vida do maestro. Revelações essas advindas de cartas a ele confiadas, mesmo que por algumas horas, por Manoel Guimarães, grande amigo de Carlos Gomes e com qual ele mantinha contatos frequentes, através de cartas. 

A crônica foi publicada no jornal Gazeta de Notícias, em 02 de julho de 1905. Cheguei a ela, através do Blog do Braga, cujo autor é Francisco José dos Santos Braga.


***

Crônica de Olavo Bilac: CARLOS GOMES



"Inaugura-se hoje, em Campinas, a estátua de Carlos Gomes.  Haverá, decerto, muitas flores, muita música, muitos discursos. De todos os pontos do Brasil, chegarão telegramas, em que palpitará o entusiasmo nacional. Os noticiaristas rebuscarão, para descrever a festa, os seus mais belos adjetivos; os poetas, com as tiorbas engrinaldadas de rosas e de laços de fitas, cantarão os seus hinos mais arden­tes; e, no meio desse transbordar de louvores e desse ferver de elogios, não haverá talvez quem pense no que foi a vida desse homem, que, depois de morto, tanto carinho, tanta admiração, e tanta homenagem merece…

Não podendo ir a Campinas, e querendo associar-me à glorificação do artista — preferi escrever alguma cousa sobre o que ele sofreu enquanto vivo. Projetei narrar alguns episódios da sua existência, e relembrar algumas das con­versas que com ele tive nas ruas, nos teatros, ou em casas amigas, entre paredes discretas… Mas o Acaso quis que um homem (que foi o maior, o mais dedicado, o mais cons­tante amigo de Carlos Gomes) me confiasse por algumas horas todas as cartas que recebera do autor do Guarani. Passei uma noite a folhear essas cartas — e reconheci que a exumação de todas as minhas recordações pessoais não valeria, como comentário digno da festa de hoje, um sim­ples resumo desta documentação fiel, espontânea, sincera, com que o próprio maestro comentou a sua vida, e que o seu amigo conserva como uma relíquia preciosa e sagrada.
O proprietário das cartas é o sr. Manuel Guimarães.

Uma amizade inalterável ligou em vida estes dois homens. O amigo, que ficou, não fala do amigo morto, sem que uma nuvem de saudade lhe tolde o olhar.
Todas as cartas são inéditas — e todas são interessan­tíssimas. Mas aproveitarei somente um volume da correspondência: e desse volume extrairei algumas das lágrimas de desespero, de dor, e de desengano, que Carlos Gomes chorou no seio do seu melhor confidente.

São doze anos de correspondência íntima e afetuosa; e são justamente os doze anos mais agitados, mais tumultuosos, mais torturados, mais vividos da vida do maestro.

A primeira carta é de Lecco (Lombardia), e tem a data de 26 de abril de 1884; a última é de Milão, e foi escrita em 18 de março de 1896 — quando Carlos Gomes, já com a boca devorada pelo carcinoma que o matou, se dispunha a partir para o Pará, onde vinha tomar posse do cargo de diretor do conservatório de música.

O que dá valor a estas cartas é o seu tom de absoluta sinceridade. Quem conheceu Carlos Gomes, sabe que nunca houve no mundo um homem mais simples, mais ingênuo, mais inocente. Ele próprio dizia: "Haverá alguém que possa odiar este pobre caboclo de Campinas?…".

Artistas há que, ainda quando estão escrevendo a ami­gos íntimos, têm a "preocupação da posteridade", e esco­lhem as suas frases, e velam os seus pensamentos, com a mira no "efeito"; já alguém disse que alguns homens céle­bres, até quando dormem, têm a atitude de quem está diante da máquina de um fotógrafo… Carlos Gomes não conhecia essas atitudes estudadas. Quando falava, em público ou na intimidade, falava como um caipira, com o coração à flor dos lábios; e, quando escrevia, escrevia tão naturalmente, que alguns trechos da sua correspondência não podem ser publicados, ou pelo desalinho e incorreção da frase, ou pela crueza da expressão…

Que vida agoniada, inquieta, sobressaltada, foi a deste glorificado de hoje — numa perpétua luta com os editores, com os empresários, com os cantores, e com os credores!
Já a primeira carta (1884) é um grito de angústia: "Não repare se lhe escrevo às carreiras, e, ainda mais, com demora. Tenho sofrido ultimamente contínuos desgostos, e de tal natureza que me paralisam os sentidos. Por minha parte, nada espero do futuro, porque sou muito caipira, e não posso ser adulador…". E daí por diante, não cessa o caiporismo…

Dizia-se que Carlos Gomes esbanjava o dinheiro — e até que jogava. Todos os seus amigos sabem que o pobre nunca pôs a mão num baralho de cartas… E, quanto ao esbanjamento do dinheiro — como pode esbanjá-lo quem somente o ganha em porções mirradas c contadas? E não teria o direito de ganhar muito dinheiro e de gastar muito dinheiro, o homem que, pelo seu talento e pelo seu trabalho, tanto honrou e elevou o nome do Brasil?… Mas, não! Pela leitura da sua correspondência, vê-se bem que as quan­tias que lhe passavam pelas mãos, mal lhe bastavam para viver com decência, e para educar os filhos. Em 1889, o maestro veio com uma companhia lírica ao Brasil, levou-a por sua conta a São Paulo — e voltou de lá endividado. Em 1890 (carta de 19 de outubro), depois de um ano de negociações, vendeu, a uma certa casa editora daqui, a pro­priedade de onze peças de música, por 350$000! A carta é dolorosa: "Aceito, enfim, a proposta da casa X porque a força maior a isso me obriga… Eles todos, desde O Guarani até O Escravo, ganham dinheiro, e riem do pobre autor… É inútil repetir-te que fico aqui esperando a quantia em fran­cos o mais breve possível, pois sabes que vivo no inferno das necessidades, e sustentando a aparência de indepen­dente. Oh! Que luta, que luta, meu amigo!". Mas não haveria aqui espaço bastante, para conter a narração dessas explorações de editores…

Em 1891 (carta de 3 de abril) Carlos Gomes vem de novo ao Brasil, com o empresário D, que deve montar algumas das suas óperas: "A patifaria de D chegou ao ponto de ter partido daqui (Milão) sem me garantir a passagem no vapor Europa a 14 do corrente. Não me chegando o adiantamento que ele me fez, tive de pôr no prego a lira com que presenteaste a Ítala. E, assim mesmo, não sei se poderei partir!…". Voltando à Europa, nesse mesmo ano — depois de ver fracassado o plano de direção de um teatro, com que o embalaram e enganaram — o maestro deixara aqui, com o seu amigo, algumas jóias. Mandou buscá-las depois, e, assim que as recebeu, empenhou-as: "Não sei como te agradeça [carta de 12 de junho de 1802] o cuidado que tiveste em remeter as jóias, que já estão depositadas no Mont de Pieté, pela quantia de 810 francos. As despesas extraordinárias, o resgate, do Condor, o seguro dos meninos, a copiatum do Colombo, me obrigaram a isso. Coragem, Gomes! Tenho certa esperança de obter qualquer cousa em Chicago!…".

Oh! esta famosa viagem a Chicago!… mais de um ano de pedidos, de promessas, de desculpas, de demoras de pagamento — e, depois da má vontade da comissão, de exigência dos comissários, de impossibilidade de organizar bons concertos — e, finalmente, de déficits, de calúnias, e desgostos… 

Em 1895, já não é somente a falta de dinheiro o que atormenta o espírito do infeliz. Dois novos sofrimentos o torturam: a moléstia do filho (Carletto, que veio a morrer  tuberculoso) — e a moléstia própria, o início da medonha enfermidade que o matou.

A carta de 2 de fevereiro de 1895 (Milão) é um largo brado de desespero: "É triste! É doloroso! É caiporismo do teu compadre! É até cômico: gastar o último vintém, dis­parar o último cartucho, para, no fim, ficar prisioneiro da feroz inimiga: a Miséria! Mas ainda não disparei o último cartucho — o crédito de que ainda gozo nesta terra es­trangeira. Ando aumentando dívidas, mas, seja como for, hei de defender o meu filho, custe o que custar!… Carletto não apresenta melhoras… Não conto mais as consultas dos médicos desde o ano passado, nem as contas da botica… Imagina, compadre, como vou eu para o Pará!".
Nessa carta, há ainda esta linha terrível, em que aparece a idéia do suicídio: "Mancinelli (o maestro que se suicidou no Rio) era em vida um ‘joão-fera’, um bicho-brabo intra­tável — mas, por fim, deu um exemplo imitável...".

Carletto ficou em San Remo, cada vez pior, Ítala ficou em Milão — e Carlos Gomes veio ao Pará (primeira viagem): já então, o cancro progride: "A minha saúde [carta de 12 de julho de 1895, escrita a bordo] tem sorrido muito ultimamente. A antiga moléstia da boca piorou… A inflamação da garganta também se tem agravado — e isso quer dizer que o clima do Pará não é para mim. Mas que fazer? No Rio, não me querem, nem para porteiro do conservatório! Em Campinas, e em São Paulo, idem! No Pará, porém, querem-me de braços abertos… Não me querem no Sul? Morrerei no Norte: tudo é terra brasileira… Amém!".

De todas as calúnias de que foi vítima em vida o grande artista, cuja estátua se inaugura hoje, a que sempre mais lhe doeu foi a que se levantou sobre a sua falta de patriotismo.

Dizia-se comumente, sempre que se queria magoá-lo, que Carlos Gomes se havia naturalizado italiano, e que impusera aos filhos a nacionalidade italiana; e até se apre­sentava como uma demonstração do seu antibrasileirismo a escolha dos nomes que ele dera às duas crianças: Carletto e Ítala…

A correspondência esclarece esse ponto, e destrói triun­falmente a calúnia.

Em 1º de dezembro de 1891, escrevia o maestro, de Milão, ao seu amigo:

"Fui derrotado em Pesaro, onde me apresentei candidato ao lugar de diretor do conservatório.

O motivo da minha derrota é simples e natural: não sou italiano. Se fosse ao menos naturalizado!… Eis aqui, compadre; sem que eu a procurasse propositalmente, posso hoje dar a melhor e mais eloquente resposta a todo e qualquer brasileiro (de Manaus a Uruguaiana) sobre as calúnias que me levantavam de ter renegado a minha pátria… Se a imprensa de todo o Brasil quisesse registrar este fato, não faria mais do que um dever de justiça; mas será inútil: a calúnia sempre deixa a catinga.

Outras derrotas posso também registrar, começando pelo Rio de Janeiro, onde nem lugar de porteiro do conser­vatório posso obter, e pela indiferença de São Paulo, Per­nambuco, Pará, Barbacena, e até Campinas, que não res­ponderam às minhas propostas e oferecimentos a respeito da fundação de conservatórios de música!"

Mas há ainda melhor: é o trecho da longa carta, escrita em 12 de setembro de 1895, de bordo do vapor Brasil, entre Pará e Pernambuco:  

"[...] Devo agora falar-te de uma nova desgraça a respeito do meu Carletto. A questão é séria e grave, tratando-se do recrutamento militar. Logo que nasceu o Carletto (29 de janeiro de 1873), registrei-o no consulado-geral em Gênova declarando-o brasileiro. Aos vinte anos, recebi aviso do Ministério da Guerra italiano, decla­rando que meu filho estava na lista da soldadesca [sic] para 1895, por ter nascido em Milão, ainda que de pai estran­geiro. Protestei, e houve troca de ofícios entre mim e o Mi­nistério da Guerra em Roma. Afinal, o ministério italiano mandou-me um ultimatum, dizendo que competia ao meu rapaz, aos 21, declarar qual a nacionalidade que então entendesse adotar.

Antes de deixar a Itália, este ano, tratei do assunto na Repartição do Recrutamento, em Milão (visto a ausência de Carletto, por motivo de grave moléstia). Responderam que tudo ficaria em regra logo que o recruta se apresentasse... Parti, portanto, da Itália, tranqüilo a respeito do melindroso assunto, certo de que o Carletto, voltando a Milão, chegaria a tempo… Não, senhor! O Carletto, voltando a Milão,  teve o aviso do chefe do recrutamento, declarando-o soldado de primeira categoria, isto é, obrigado por três anos, visto não ter feito em tempo a declaração da nacionalidade estrangeira, à qual tinha direito por ser filho de pai brasileiro."

Felizmente, tudo se arranjou, não sem dificuldade. E, em outra carta de Milão (15 de outubro de 1895), há estas nobres e comovedoras palavras:  

"És o primeiro a quem escrevo a este respeito… Carletto acaba de receber do governo italiano a declaração formal de ficar livre do serviço militar, por ser considerado estrangeiro. Estrangeiro por quê, pergunto eu? Por ser filho do maestro Carlos Gomes, o qual foi, é, e há de ser sempre estrangeiro na Itália. Este fato é mais uma resposta aos meus inimigos do Brasil, resposta a todos quantos até hoje duvidam da minha leal­dade como brasileiro legítimo e patriota! Carletto está enfim livre da farda italiana; quem o livrou foi o governo do Brasil, ou foi a legalidade?… Se eu fosse naturalizado italiano haveria governo no mundo capaz de salvar o meu filho? Compadre, a mentira tem pernas curtas; por mais que possa correr, acaba por ser alcançada pelas investi­gações da verdade… Carletto está agradecido a Carlos de Carvalho, ao nosso ministro em Roma, aos deputados que o recomendaram ao nosso governo; Carletto agradece tam­bém a ti e ao compadre Castelões, pelas visitas feitas ao ministro das Relações Estrangeiras no Rio; mas Carletto agradece ao mesmo tempo a seu pai, por ser brasileiro, fiel à sua pátria…".

Agora, a última carta da coleção.

Carlos Gomes vai de novo partir de Milão: 

"A 1º de abril [carta de 18 de março de 1896] conto embarcar em Lisboa para o Pará, onde fui positivamente nomeado dire­tor do conservatório da capital. O meu emprego poderá durar de dous a três anos… Tudo é possível! É possível tam­bém que eu não continue por muitos meses ainda neste mundo… Não imaginas o estado gravíssimo da minha boca: a garganta e glândulas sempre inflamadas; no centro da língua uma ferida enorme… Há muitos meses que perdi o paladar; o meu alimento normal é leite e miolo de pão, nada mais. Qual é o homem que, neste estado, pode ver o futuro cor-de-rosa? Ninguém imagina o heroísmo com que eu suporto a minha situação. Acrescenta a este estado físi­co insuportável a agitação moral… Depois do Colombo, não consegui terminar trabalho algum principiado".

E, mais adiante:  

"[...] Bastava-me um emprego, o qual finalmente acabo de obter no Pará. Este fato me consola bastante. Pará é terra brasileira… Eu sempre desejei finalizar a luta na minha terra!".

E agora, o epílogo, o último passo doloroso da longa vida de torturas… E uma carta, já não do maestro, mas de um amigo de sempre: 

"Pará, 26 de maio de 1896. Meu caro… Desde o dia 14, o Pará hospeda com fidalguia Carlos Gomes, havendo da parte do governador Lauro Sodré toda a solicitude. Infelizmente, a junta médica, chefiada pelo dr. Pais de Carvalho, julga-o inteiramente perdido. É horrível o sofrimento do nosso maestro: a língua, inteira­mente tomada, dificulta a fala, e só lhe permite alimentar-se com leite e caldo. Como ele é teu compadre e amigo, prepara-te para tudo quanto possa haver de mais desagradável…".

De fato, poucos meses depois, a 11 de julho de 1896, o grande artista morria. O emprego, tão ardentemente ambicionado, chegara tarde; o pão, tantas vezes pedido, já não achara boca com que o pudesse comer…

Não nos revoltemos contra essa dura fatalidade, que pesa sobre o destino dos homens de gênio — desconheci­dos e desprezados em vida, e glorificados depois da morte. Na terra, sempre existiram cigarras e formigas. A cigarra nasceu para cantar, e a formiga nasceu para enriquecer: como se há de evitar que cada uma delas cumpra a sua mis­são, sujeitando-se às desvantagens ou gozando as vantagens que nessa missão estão compreendidas?

A formiga tem mais dinheiro, mas a cigarra tem mais glória. Infelizmente, a glória não é cousa que os prestamistas e os agiotas aceitem como penhor de qualquer empréstimo…



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